S. Valentim?

 

Mal passa o ciclo do Natal, logo entra em campo S. Valentim. Em se aproximando Fevereiro, coloca-se em movimento uma colossal máquina de propaganda, que se nos bombardeia com solicitações, convites, ofertas e promoções alusivas a S. Valentim (género: "Surpreenda a sua «cara metade» com uma prenda à sua medida. Jóias, perfumes, viagens, flores e muito mais à sua disposição para fazer a diferença no Dia dos Namorados"). Confesso que este "Dia dos Namorados" não me entusiasma nem um pouco, antes pelo contrário: nada me diz. No meu tempo de adolescente - o que, acreditem, nem foi assim há tanto tempo - nunca ouvi falar em tal santo. O dia 14 de Fevereiro era um dia igual aos outros, sem nada de assinalável. No entanto, ao que se vê agora, S. Valentim parece fazer parte das nossas tradições mais arreigadas.

E, como de pequenino é que se torce o pepino, lá vemos as nossas escolas e outras instituições igualmente respeitáveis a organizarem actividades comemorativas do "Dia dos Namorados" dirigidas a, pasme-se, crianças dos jardins de infância ou do ensino básico. Admito que possa ser classificado como bota-de-elástico, mas confesso que não percebo bem o que se pretende ensinar sobre a matéria em questão a miúdos que ainda há pouco largaram (e, se calhar, nem todos) as fraldas…

S. Valentim não faz parte das nossas tradições populares. Trata-se de uma manifestação da cultura anglo-saxónica de importação recente, no quadro de um processo de aculturação que nos vai impondo as práticas da cultura dominante, num movimento de massificação e de unificação cultural que tende a anular as marcas de identidade e de originalidade presentes em múltiplas expressões das culturas nacionais e locais.

Basta folhear as páginas da obra (quase) exaustiva de Jorge Barros e Soledade Martinho Costa Festas e Tradições Portuguesas - Ritos, memória e identidade, para perceber que não há lá lugar para S. Valentim. Todavia, por esse país fora, não faltam festas de namorados, espalhadas por diversos meses do calendário. E, destas, uma das mais originais tem lugar em Guimarães, entre a romaria da Senhora da Conceição (8 de Dezembro) e a de Santa Luzia (13 de Dezembro), onde os namorados trocam sardões e passarinhas, doces pitorescos que, pelo nome e pela configuração, denunciam segundos sentidos carregados de um simbolismo malicioso e quase explícito. "Se me deres a passarinha, eu dou-te um sardão", diz o rapaz para a rapariga, com a malícia de quem aspira a receber algo mais do que aquele doce de pasta de farinha, recoberto com uma camada branca de açúcar e enfeitado com pedacinhos de papel.

Quem tem uma festa de namorados assim eloquente e original, só deve tratar de a preservar e não carece de celebrar tradições alheias.

Aos que lhe vêm falar em festas de namorados, os de Guimarães deveriam responder como só eles sabem, no seu português tão colorido e expressivo, exibindo-lhes os seus sardões e as suas passarinhas.

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2 Comentários

Francisca Torres disse…
Leio em http://www.eb23-caldas-vizela.rcts.pt/ji_vinha/actividades/activ07_08/valentim0708.htm:

"Festejamos no Jardim o dia dos namorados e dos amigos coloridos"

Olá! Amizades coloridas no Jardim de Infância? Isto está bonito, está...
Cristina Torrão disse…
O problema é que o comércio já não prescinde do Dia dos Namorados. Enquanto as montras bombardearem os jovens (e não só) com artigos alusivos ao tema, eles deixar-se-ão influenciar. Na nossa sociedade de consumo, as pessoas acreditam precisarem dessas coisas para serem felizes.