Os Lusíadas da Sociedade Martins Sarmento (3)



Como os livros que eram oferecidos à Sociedade Martins Sarmento eram registados nas actas da Direcção e nada havendo a respeito do exemplar da primeira edição de Os Lusíadas, presumiu-se que a obra teria chegado á biblioteca por outra via. Seguindo uma indicação da investigadora Maria José Meireles, que já se tinha deparado com uma referência à chegada dos Lusíadas na década de 1880, foi possível apurar que, afinal, o exemplar da SMS não tinha sido doado, mas que havia sido comprado num leilão, após a morte do seu anterior proprietário o Dr. Bento Cardoso, um conhecido bibliófilo, reputado advogado de Guimarães, (Camilo Castelo Branco refere-o na Brasileira de Prazins). Nas páginas 166 e 167 da 2.ª edição, de 1996, da obra Guimarães – Apontamentos para a sua História, do Padre António José Ferreira Caldas (1.ª edição: 1881), encontra-se a seguinte nota:

"— Bento António de Oliveira Cardoso, cavaleiro da Ordem de S. Tiago da Espada, bacharel em cânones pela universidade de Coimbra, sócio correspondente da Associação dos advogados de Lisboa, etc. Nasceu a 25 de Janeiro de 1806. Escreveu magistralmente sobre vários assuntos jurídicos, que se acham publicados na Gazeta dos Tribunais e no Portugal, assim como vários artigos sobre medicina legal. A respeito da sua ALEGAÇÃO JURÍDICA, QUESTÃO DE ÁGUAS SUBTERRÂNEAS, etc., diz o snr. António Gil que é uma das mais ricas alegações que se podem imaginar, rica na forma e na matéria, e notável principalmente na parte em que trata dos vedores, e da vedoria, por ser este assunto, se não completamente ignorado, ao menos bastante estranho a quase todos que cursam o foro na capital. As ALEGAÇÕES JURÍDICAS do nosso egrégio patrício, das quais faz comemoração honrosa o snr. Inocêncio no seu DICIONÁRIO, são de tal alcance e valimento, que não posso roubar-me ao desejo de citar aqui algumas das mais importantes, e que por isso mereceram levantados encómios dos mais abalizados jurisconsultos do nosso país. Seja a primeira REFLEXÕES JURÍDICAS A FAVOR DA MISERICÓRDIA DE GUIMARÃES, com o seguinte enunciado: «Devem as misericórdias pagar emolumentos aos párocos pelo baptismo dos expostos, e será justo e louvável ou racionável tal costume quando exista? - Não, porque tudo quanto se der ao pároco por tal título é à custa dos miseráveis expostos ou de suas pobres mães que na dita misericórdia vão procurar um asilo em tal transe». - Vem publicada na Gazeta dos Tribunais, tom. XIV, nº 1981, e é ali tratada a questão com tal proficiência, que a redacção a aprecia deste modo: «Esta alegação jurídica acha-se tão bem deduzida, e é tão rica de argumentos tirados do direito canónico e do direito civil, que nada deixa a desejar, podendo servir de modelo no seu género». É igualmente digna de menção a sua ACÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA que se lê no tom. XXV da mesma Gazeta, nº 3713. Tratam-se aqui com uma profundidade e erudição jurídica e médico-legal, pouco vulgar, duas das mais importantes e duvidosas questões que se debatem e tem debatido no nosso foro tanto antigo como moderno. Finalmente no tom. XXVIII da mesma Gazeta, e ainda em outras muitas, o nosso prodigioso patrício apresenta-se nas variadíssimas e intrincadas questões jurídicas como um dos mais distintos, mais vigorosos e invencíveis polemistas. O nosso imortal jurisconsulto possui ainda muito notável erudição em todos os ramos de literatura, e é senhor duma das mais selectas e preciosas livrarias da província do Minho."

Bento Cardoso faleceu em 12 de Abril de 1886. Consultados os jornais da época, encontrou-se a notícia da sua morte, redigida em termos muito curiosos para um obituário, no Religião e Pátria de 14 daquele mês:

"— Falecimento – Até que enfim, já não é deste mundo o exmo. snr. dr. Bento António de Oliveira Cardoso, o abalizado jurisconsulto, honra e glória desta terra e ornamento distintíssimo do foro português. Vitimou-o anteontem a penosíssima enfermidade que há muito tempo o atormentava, e o seu cadáver teve hoje os respectivos ofícios fúnebres na igreja de S. Francisco, sendo depois conduzido, em luzido cortejo, ao cemitério municipal, onde foi sepultado."

No Comércio de Guimarães de 18 de Novembro seguinte aparece um anúncio intitulado "Venda de Livraria, onde se lê que até ao dia 31 de Dezembro do corrente ano, está patente o catalogo da livraria que foi do falecido Dr. Bento António de Oliveira Cardoso, na casa do mesmo falecido, rua de Camões, n. 101". A residência na rua de Camões parecia ser um bom augúrio… No Religião e Pátria de 4 de Dezembro, já se noticiava que a Sociedade Martins Sarmento "adquiriu por compra, para a sua biblioteca as livrarias do afamado jurisconsulto dr. Bento António de Oliveira Cardoso e do seu irmão cónego António Joaquim de Oliveira Cardoso". Por esses dias, não se encontra qualquer referência ao poema de Camões.

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