Os Lusíadas da Sociedade Martins Sarmento (6)


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Do Padre Torcato Peixoto de Azevedo, provavelmente o primeiro proprietário da edição de 1572 de Os Lusíadas da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, eis a biografia conhecida, traçada pelo Abade de Tagilde no n.º 1 da Revista de Guimarães:

Torquato Peixoto de Azevedo

Filho do sargento-mor João Rebelo Leite e de sua mulher D. Isabel Peixoto de Azevedo, irmão do célebre João Rebelo Leite, cujos serviços à pátria na guerra da Aclamação lhe granjearam a graduação de Mestre de campo ad honorem por carta régia de 15 de Janeiro de 1664 e a quem bem cabe a antonomásia de Lidador Vimaranense, que lhe dá o P.e Caldas, nasceu o nosso terceiro monografo — e não primeiro, como erradamente se afirma no Dicionário Popular dirigido pelo exc.mo Pinheiro Chagas — a 2 de Maio de 1622.

Desde criança madrugou nele a inclinação para as letras, especialmente para a história, predilecção que sempre conservou até aos últimos dias de sua vida, empregando todas as horas, que lhe restavam das suas obrigações sacerdotais, no estudo para que, como ele mesmo diz, a ociosidade, mãe de vícios por inimiga da virtude, não fosse ocasião de estragar-se-lhe a honra.

Trabalho tão assíduo não podia deixar de produzir fruto, e assim a sua pena se (levem além de três cadernos de importantes notícias, trinta e cinco volumes; vinte e dons dos quais no tempo de Barbosa Machado se achavam em poder de Manuel Peixoto dos Guimarães Freitas e Miranda, senhor da quinta de Lamelas na freguesia de Santo Adrião de Vizela então do termo de Guimarães e hoje do concelho de Felgueiras, filho de D. Mafalda Luísa Leite de Azevedo, filha de António Leite Ferreira, irmão do nosso monógrafo.

Segundo o testemunho de Barbosa Machado e de D. António Caetano de Sousa, dez destes volumes ocupavam-se das vidas de diversos reis de Portugal e Castela, duques de Bragança e de Lorena e descendência das casas reais de Castela e Áustria e as doze restantes tratavam de genealogias de famílias portuguesas, provavelmente minhotas, examinadas com judiciosa crítica.

Uma outra obra se deve ao estudo incansável do P.e Torquato Peixoto de Azevedo e é ela que nos leva a ocuparmo-nos agora deste nosso patrício. São as Memórias ressuscitadas da antiga Guimarães, impressas em 1845 no Porto — tipografia da Revista.

Esta obra, escrita pelo seu autor para fornecer a seus leitores exemplos não só "para conservação da vida humana como para o conhecimento do perigo de que nos devemos desviar para não chegar a perder a eterna" compreende "as primeiras polícias da nossa antiga Araduca, a fundação da nova Guimarães e de sua igreja real; sua grandeza, moradores, freguesia, concelhos, coutos e honras de seu termo; edifícios, mosteiros, capelas, rios, pontes e fontes suas vizinhas; morgados e privilegias, isenções e liberdades com que foram honrados de seus réis; casos e sucessos que na sua defesa e do reino lhe sucederam", Assim o promete a autor na prefação. Satisfaria?

Tem a Antiga Guimarães 142 capítulos, que nem todos se ocupam de Guimarães, pois os primeiros 44 tratam, ainda que resumidamente, da divisão da terra pelas filhos de Noé, descrição da Europa, povoação da Espanha e diferentes divisões que no correr dos tempos sofreu, formação de Portugal, povoação e sucessos de Entre-Douro-e-Minho, tanto no tempo dos Gregos, Celtas — se estes aqui vieram —. Como no dos Romanos, Gados e Árabes. Os restantes 98 capítulos, que abrangem 355 páginas, ocupam-se do que mais directamente diz respeito a Guimarães situada "no meio de tão excelente província de Entre-Douro-e-Minho, como pedra preciosa desta jóia, esmaltada de excelências".

No curto espaço duma biografia e escrita corrente calamo não nos é possível, embora possuíssemos a competência que nos mingua, desenvolver apreciações criticas relativas aos capítulos, que tratam das causas de Guimarães, e mesmo porque a confrontação da Antiga Guimarães com a obra ultimamente publicada Guimarães, apontamentos etc., põe em relevo as faltas e merecimentos do P.e Torquato.

Suposto que este título da Antiga Guimarães não seja muito próprio para cativar e prender a atenção do leitor e apesar de em tanta variedade de factos depararmos algumas inexactidões e mesmo contradições e por vezes nos enfadar tanta difusão, talvez desnecessária e nem sempre uma rigorosa crítica lhes servir de norte, as Memórias ressuscitadas da antiga Guimarães hão de sempre ser consultadas por quem deseje conhecer as transformações por que a velha pátria do rei conquistador ia passando.

O P.e Torquato coloca-nos à mão muitos dados, cujo conhecimento só alcançaríamos manuseando grossas volumes e dá-nos conta de outros, que não adquiriríamos sem o seu auxílio. Deixa-nos alguns pontos que desejaríamos mais lucidamente desenvolvidos e de boamente prescindiríamos de algumas minuciosidades, que nos narra. Mas onde a formosura sem senão?

É necessário também ter em vista a época em que escreveu o nosso patrício; sua obra não podia deixar de ressentir-se da influência do seu tempo e neste quase todas as produções literárias, como diz o Dicionário Popular, são difusas, prolixas, obscuras.

Eis o nosso desautorizado parecer acerca da P.e Torquato Peixoto de Azevedo, esse indefesso vimaranense, que terminou sua longa carreira na idade de 83 anos aos 23 de Junho de 1705.

João Gomes de Oliveira Guimarães, "Monógrafos vimaranenses", Revista de Guimarães, n.º 1 (4) Out.-Dez. 1884, p. 190-195

Se as Memórias ressuscitadas do Padre Torquato se ressentem, quanto à objectividade histórica, da influência do seu tempo, da sua leitura parece resultar claro tratar-se de um excelente prosador.

Tem a antiguidade muitas sombras, porque são nela tantas as escuridades como os anos, e o que se soube bem esconder nunca se pode bem conhecer, pelo que acham os tempos testemunhas falsas nas histórias, se os anais não são verdadeiros, e é temeridade querer pôs à luz o seu principio, quando o descuido dos que viveram naqueles primeiros séculos não deixaram notícias de suas memórias…

Padre Torcato Peixoto de Azevedo, Memorias ressuscitadas da antiga Guimarães, 1692 (edição de 1845, cap. I, p. 9).

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