Da cidade extraordinária e da cidade ordinária

Há poucos dias, quando já quase encerrava a campanha eleitoral para as eleições autárquicas, foi despoletada em Guimarães uma polémica originada na leitura de declarações ao jornal Público, de 3 de Outubro, de Álvaro Domingues, geógrafo que tem colaborado com a Câmara Municipal de Guimarães, nomeadamente no âmbito da revisão do Plano Director Municipal, a propósito da distinção que faz entre aquela que classifica como a "cidade extraordinária" (o Centro Histórico classificado) e a "cidade ordinária". Dizia Álvaro Domingues:

"Guimarães sempre teve mais de dois terços da população e do emprego fora do perímetro urbano. E sempre acharam normal; agora cavou-se uma trincheira. Só se preocupam com o centro histórico, com a cidade extraordinária. Do outro lado da trincheira, está a cidade ordinária, a genérica, que não tem marca e ninguém vê... As pessoas agarram-se ao que acham que conhecem, e, à medida que vai aumentando o trauma da perda da cidade extraordinária, aumenta a amnésia do resto."

Estas declarações levantaram alguma discussão, incluindo expressões de indignação por parte do Presidente da Câmara, confrontado pela oposição com o teor das afirmações de Álvaro Domingues. Todavia, a única novidade nesta discussão não são, ao contrário do que possa parecer, as declarações do geógrafo, mas sim as reacções que provocaram, explicáveis pelo ardor da disputa, em contexto eleitoral, que se vivia naquele momento. Para se recentrar a discussão, proponho a leitura do seguinte texto:

"Guimarães é, a este propósito, um caso de grande contraste e contradição. Face à velocidade e à complexidade do que muda, perdem-se uns em lamentos sobre perdas das paisagens mitificadas do passado; perdem-se outros no rol de contrariedades acerca do que realmente existe e da sua invariável falta de outro sentido que não seja o caos ou o "feísmo". Como terapia apaziguadora, andarão uns e outros à procura de enquadramentos forçados para as suas paisagens extraordinárias: o apinhado de casas no centro histórico da cidade com o castelo ao fundo; o bucolismo de um fragmento de uma veiga com os seus campos, vinhas e casas vetustas.

Tudo o resto são paisagens ordinárias e banais, sem memória, sem identidade, sem qualquer tipo de espessura que tenha ficado do legado da história, dos traços de uma natureza por demais revolvida e transformada. É uma espécie de diálogo pela negativa, pela ausência, pela superficialidade ou pela contrariedade. No entanto, estas paisagens genéricas são o palco do quotidiano da maior parte das pessoas e é por isso estranho que assim se possam manter estas contrariedades e ausências."

O autor dos dois parágrafos acima transcritos, perfeitamente coerentes com as declarações ao jornal Público, é Álvaro Domingues. Ali encontramos, também, a distinção entre a "cidade extraordinária" e a "cidade banal". Porém, ao contrário do que agora sucedeu, elas não provocaram qualquer polémica, nem sequer um mínimo de discussão. Constam do processo de "Candidatura ao título de Capital Europeia da Cultura", apresentado por Guimarães em Bruxelas, documento que está publicado e que não deverá ser desconhecido daqueles que agora se pronunciaram sobre esta questão. Se, desta vez, como consequência da notícia do Público, Álvaro Domingues deixar de trabalhar com Guimarães, estou em crer que será Guimarães quem mais ficará a perder. Deixemos, pois, que a poeira assente.

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