A Chronica Gottorum, que, em apêndice da Terceira Parte da Monarquia Lusitana, António Brandão publicou, diz textualmente:
«Era 1166... Commisit cum eis praelium in campo Sancti Mametis, quod est prope castellum de Vimaranes...». No texto da Monarquia Lusitana (livro IX, fls. 88) lê-se uma transcrição da História dos Godos, em que se dá a batalha como sendo em Junho de 1128, no dia de S. João Baptista, «in Campo Sancti Mamantis, vulgo Mametis, prope Castellum Vimaranense».
O primeiro problema que se levanta é o da localização do acontecimento.
O nosso malogrado João de Meira disse, por mais duma vez, fundado em certo passo do Portugaliae Monumenta Historica, (castellum quos vocitant sanctum mames), que a batalha se dera, não, como a tradição afirma, em campos do vale de S. Torcato, mas junto do Castelo (conclusão III da sua conferência Guimarães, publicada na Revista de Guimarães, vol. XXXI, n.° 3).
O que se lê na Crónica dos Godos e na História dos Godos e no documento dos Portugaliae Monumenta Historica não invalida, a meu ver, a tradição, nem a contradiz. O Castelo de Guimarães chamou-se de S. Mamede? Está bem.
A batalha deu-se perto do Castello – prope Castellum. O que conviria averiguar é o significado preciso da palavra prope.
O nosso Bento Pereira, na sua Prosódia in vocabularium bilinguae, dá à palavra prope o significado de perto, junto, vizinho. Nenhum destes significados é incompatível com a localização da batalha de S. Mamede, em terras do vale de S. Torcato.
Há, em Aldão, o chamado Campo da Ataca (hoje, parte duma propriedade que pertence a Rodrigo Pimenta, meu irmão) – nome que, segundo a tradição, lhe vem de ter sido nele que se travou o encontro bélico. Impressionam-me sempre estas deslocações dos factos, por virtude da tradição. Já a batalha de Ourique, há quem pretenda que ela se deu muito longe do local que a tradição lhe atribui. A batalha de S. Mamede não podia dar-se no vale de S. Torcato? «Junto do Castelo de S. Mamede» é uma expressão muito vaga, para que queiramos que ela signifique o lugar onde hoje é o Cano, e não possa significar a Arcela, a Madre de Deus, ou o campo da Ataca. É natural q. se tomasse como ponto de referencia, o Castelo, visto não haver ali, mais perto, coisa mais digna. E por isso se disse – perto do Castelo, prope Castellum, como, se o caso se tivesse dado em Vizela, por exemplo, se teria dito – perto de Guimarães.
Desconheço, e não tenho elementos aqui à mão, e nem sei se os há para a fazer, – a história da freguesia de S. Mamede de Aldão. Qual a data da primitiva capela? Porque se diz sob a invocação do Mártir de Cesareia da Capadócia, essa capela? Foi o Castelo que deu nome à freguesia distante, ou foi a freguesia que deu nome ao Castelo? Se pudéssemos responder a estas perguntas, talvez ficássemos habilitados a ir contra a tradição, no problema da localização da batalha, e a apoiar o asserto do inolvidado João de Meira, a quem a preocupação da verdade obcecava. Mas o que é facto, é que o chamar-se castelo de S. Mamede ao castelo de Guimarães não é razão para se afirmar que a batalha se travou em redor dos seus muros – para o que talvez houvesse um termo mais próprio do que prope (1).
Ultrapassado o problema da localização, resta-nos o da sua importância como feito militar, e como acontecimento de natureza política.
Do que foi a batalha de S. Mamede, a que eu chamaria antes combate de S. Mamede, muito embora a palavra praelium possa designar acção geral (mas em Bréal et Bailly, Dictionnaire etymologique latin, praelium significa simplesmente combate), porque tanto quanto nos é possível supor, o caso não teria comprometido forças muito avultadas, nem ocupado muito espaço, nem durado muitas horas, – do que foi a batalha de S. Mamede, como feito militar, nada se sabe. Na Monarquia Lusitana diz-se que «escrevem nossos autores que o Infante saiu desbaratado do primeiro recontro e que tornando à peleja por conselho de seu Aio Egas Moniz (o qual lhe acudiu com alguma gente de refresco) alcançou a vitória». António Brandão não dá muito crédito a «esta variedade». De modo que, repito, nada se sabe ao certo do que foi a batalha sob o ponto de vista militar.
E sob o ponto de vista político?
O reinado de D. Afonso Henriques é, por assim dizer, uma peça inteiriça: todo ele, de ponta a ponta, é um sistema de esforços conjugados, e superiormente dirigidos, para a independência do Condado de Portugal.
A batalha de S. Mamede é o primeiro acto decisivo, claro, que não admite dúvidas, da série gloriosa de feitos do fundador do Reino de Portugal. É o nosso grito de independência, é a nossa primeira afirmação de personalidade e de vontade. Vitorioso da hoste estrangeira, Afonso Henriques ergue voo, nas suas legítimas aspirações, e sonha o talhar de fronteiras que é o seu longo reinado.
Génio político e militar formidável, Afonso Henriques é o obreiro máximo da nossa existência como Nação. E foi na batalha de S. Mamede que o plano grandioso se fixou, se concretizou e definiu. Sem a batalha de S. Mamede, a história de Portugal não podia existir: ela foi o seu berço.
Tudo quanto veio depois, a obra inolvidável das dinastias que se seguiram, saiu do combate dos campos de S. Mamede, em q. D. Afonso Henriques passando sobre os seus sentimentos de filho, defrontou a vontade da Mãe, subjugada à influência do estrangeiro. Perdoa-se a D. Teresa essa fraqueza sentimental de uma paixão serôdia – recordando-se que também ela cooperara, ainda em vida do marido, para que as condições do condado portucalense tornassem possível o gesto audacioso de Afonso Henriques, em 1128.
Volvidos 800 anos sobre essa data fascinante, a Nação persiste. Foi a continuidade da Realeza que garantiu essa persistência. Neste ano em que escrevo, em que me irritam os nervos, cantos de sereia castelhana que mascaram mal disfarçados apetites do Imperialismo Ibérico, é um dever, e um dever sagrado, recordar a batalha de S. Mamede, e a figura prestigiosa do Rei que a venceu. Coincidência curiosa: há oito séculos, nasceu Portugal. Em 1128, ergue-se o Sol magnífico; em 1828, abre-se a noite nefanda. Como vimaranense e como português, não posso, nesta hora, calar o grito sagrado: - Viva Portugal!
(l) Duarte Galvão diz que o recontro se deu «em hum lugar q. chamam Samtidanhas» (Crónica delRey Dom Affomso Hamrriques, cap. VI). Indo, presumivelmente, atrás de Galvão, o espanhol Mariana (Historia General de España, libro X) escreve «diose la batalla en la vega de Santivañez, cerca de Guimaraens». Samtidanhas, Santivañez – que mais haverá?
Alfredo Pimenta.
(A Ilustração Moderna, n.º 25/26, Julho-Agosto de 1928, Porto, pág. 189-191)
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