O aniversário do Visconde de Margaride, por Camilo Castelo Branco

O Conde de Margaride, numa caricatura de José de Meira.

O Conde de Margaride, Luís Cardoso Martins da Costa, bacharel em filosofia, nasceu no dia 8 de Janeiro de 1836. Era filho de Henrique Cardoso de Macedo e de Luísa Ludovina de Araújo Martins. Aos 30 anos, casou com Ana Júlia Rebelo Cardoso de Meneses. Por decreto de 1 de Agosto de 1872, passou a usar o título de Visconde de Margaride; em 1874, tornou-se Conselheiro de Estado. Em 1877, foi agraciado com o título de Conde de Margaride. Destacou-se pela sua actividade política, tendo sido Governador Civil dos distritos de Braga e do Porto. Em Janeiro de 1874, ainda Visconde, foi mimoseado por Camilo Castelo Branco com um texto que foi publicado no primeiro dos quatro números das Noites de insónia, oferecidas a quem não pode dormir, onde o romancista satiriza a festa de aniversário do ilustre vimaranense.


REABILITAÇÃO DO SNR. VISCONDE DE MARGARIDE

S. exc.ª festejou o seu natalício com um baile, em um dia de jejum, por uma noite de Janeiro, breve e esplendorosa. O dia era de abstinência carnal, note-se. Creio que o preceito começava à meia-noite, pontualmente à hora em que a restauração das forças, esvaídas na vertigem dos bailados, reclamava vários fenómenos reparadores desde a trituração até ao filtramento do quilo no sistema sanguíneo. Se eu não odiasse o palavreado vulgar, diria que os hóspedes do snr. visconde precisavam de comer.

À magnitude do apetite correspondeu a magnificência dos acepipes. Era já soada a hora da abstinência do boi, do peru, da galinhola, do salmagundy. E, não obstante, as iguarias condimentosas, a febra, a alimentação rija lourejava nos pratos e nas terrinas entre ondulações de perfumes. Alguns dos convivas sabiam que o dia ou a noite era de peixe. Senhoras de idade canónica, respeitáveis por seus princípios e observantes das disciplinas da igreja, não vendo alvejar a pescada ou o rodovalho entre coxins de batata e cebola, tantalizavam a perdiz em molho de vilão; mas, cerrando os dentes à invasão do pecado, esquivavam-se a sair do baile com o bolo alimentício azedado por escrúpulos. Neste comenos, alguém disse o que quer que fosse a meia voz às pessoas perplexas entre a galinhola truffée e a religião dos Afonsos.

Umas pessoas, depois que ouviram a nova, sorriram, como vencidas de tentação deliciosa, e comeram carnes. Outras, invulneráveis e inflexas na sua abstinência, martirizaram-se com trutas e salmões. Como quer que fosse, houve escândalo. Comeu-se volateria e ruminantes em sexta-feira. Algumas conscienciosas saíram do baile do snr. visconde, às 8 horas e meia da manhã, com o peso do estômago sobre si.

A opinião pública, já em Guimarães, já em Braga, ergueu-se à altura dos princípios, e murmurou. Eu fiz parte desta opinião adversa ao magistrado superior do distrito a quem corre o dever de penitenciar os seus hóspedes com trutas e salmão em dias de peixe, em memória dos augustos mistérios do cristianismo.

Quanto a mim, o snr. visconde era um ateu e os seus hóspedes uma cáfila de heresiarcas. Eis senão quando a imprensa do Porto divulga uma notícia que bafejou um hálito de júbilo na face de Braga, no perfil de Guimarães, e nos três quartos do país. Apresso-me a repeti-la em grifo com uma consolação católica, e tanto ou quê apostólica: O snr. visconde de Margaride tinha obtido dispensa do prelado bracarense para que os seus hóspedes pudessem comer carne.

Orvalhe-se de lágrimas de alegria o rosto da cristandade portuguesa; que eu por mim, quanto um abraço cabe nas potências da fantasia, aqui aperto contra o coração o snr. visconde de Margaride, e felicito os católicos que digeriram inocentemente as suas vitualhas.

Camilo Castelo Branco, Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº1, Janeiro de 1874, Biblioteca de Algibeira, Livraria Internacional de Ernesto Chardron, Porto

Nota: Salmagundy é uma salada, já usada nos séculos XVII e XVIII, composta com galinha quente, anchovas, ovo cozido, ervilhas, cebola cozida e uvas e temperada com uma vinagreta.

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