Braga contra Guimarães, segundo Oliveira Martins

Aquando do conflito Brácaro Vimaranense de 1885-1886, J. P. Oliveira Martins era o responsável pelo jornal A Província, que acompanhou de perto, de ambos os lados, os desenvolvimentos da contenda. A dada altura, o historiador publicou dois textos sobre a matéria, onde desenvolve algumas reflexões sobre as circunscrições dos distritos. Aqui fica o primeiro desses textos onde, a dada altura, Oliveira Martins pergunta, referindo-se ao Porto, a Viana do Castelo e a Braga: Podem acaso três cidades assim vizinhas ser capitais de distrito?


BRAGA CONTRA GUIMARÃES (21-1)

Sabem os nosso leitores que na pendência levantada entre Braga, a Augusta, e Guimarães, que foi berço da monarquia, nos temos abstido porque essas questões locais devem ser dirimidas apenas entre os interessados, e mal vai quando um partido perfilha a causa de uma ou outra localidade. A Província tem sido e será o campo aberto a ambos os contendores, embora, como habitantes do Porto, não pudesse deixar de nos ser agradável o ver entrar no nosso grémio distrital uma cidade tão nobre e tão importante como é a de Guimarães.

Mas, como membros do Partido Progressista, não concebemos que este possa identificar-se com os interesses de Guimarães e menos ainda com os de Braga, porque em ambas essas localidades, como em todas as do Reino, o nosso partido tem adeptos fiéis, adeptos ilustres, em grande número. Nem a causa de uma localidade pode jamais ser a causa de um partido como é o nosso, que abrange todo o Reino e um povo inteiro.

Por isso nos dói ver que as manifestações recentes vão tomando um carácter que pode tornar-se partidário; e que Braga entoa contra Guimarães esses hinos heróicos da Maria da Fonte, que ambas deviam entoar agora de mãos dadas contra um Governo por tantos lados parecido com o cabralismo de 1846.

Há nisto um grave erro e até um perigo, porque de ambos os lados vemos progressistas, de ambos eles regeneradores, e prejudicaria decerto a uns e a outros que uma questão apenas local fizesse de Braga progressista e de Guimarães regeneradora, ou vice--versa, porque é bom que em cada cidade os litigantes estejam representados.

São inimigas antigas as duas cidades do Alinho, e essa rivalidade, às vezes acesa até ao ódio, é um exemplo anacrónico das velhas lutas municipais da Idade Média, quando cada concelho estava numa atitude, senão hostil, reservada para com os vizinhos, precisamente como sucede hoje às nações. B que a amplitude dos sentimentos de coesão social se alargou, nos séculos decorridos, dos limites de cada município, aos limites de cada nação.

Esse anacronismo porém existe, é um facto, entre Guimarães e Braga, e decerto a tradição entra por muito no conflito a que temos assistido ultimamente; sendo para notar que Guimarães se queixe dos prejuízos que sofre, e Braga igualmente alegue o peso e a carga que lhe traz a inclusão de Guimarães no seu distrito. Ora se é óbvio que, sentindo-se lesada, Guimarães peça a desanexação, é contraproducente que Braga, declarando-se também lesada, reclame a conservação do statu quo. Observe-se, além disso, que é diversa a situação de uma cidade que, usando de um direito legítimo manifesta o desejo de fazer parte de outro grémio administrativo, da situação de outra cidade que procura manter contra vontade os vizinhos no seu distrito e sob o seu mando.

E, sem querer, íamos entrando na questão, quando o nosso propósito é dizer apenas o que ela nos sugere sob um ponto de vista administrativo e sob um ponto de vista político. Em princípio, entendemos que ninguém, homem, família ou cidade, pode nem deve ser compelido ao quer que seja, sempre que se não derem causas de ordem superior que a tanto obriguem. Existem elas contra a pretensão de Guimarães? Negue-se-lhe pois o deferimento. Não as há? Não há inconveniente para o país em que Guimarães pertença ao distrito do Porto? Defira-se o requerimento.

A nosso ver esta questão prende-se com uma questão mais geral e urgente, ainda sob o ponto de vista da economia, qual é a do alargamento da área dos distritos, especialmente no Minho. As circunscrições actuais são anacrónicas perante a facilidade dos meios de comunicação. Do Porto vai-se a Braga em duas horas, de Braga a Viana vai-se em três horas. Podem acaso três cidades assim vizinhas ser capitais de distrito? Os três distritos do Norte litoral do Douro representam a área total de 748.000 hectares: pois o distrito de Beja representa por si só 1.076.000 hectares!

A distância, dados os meios de locomoção, isto é, a área considerada de um modo não apenas topográfico, é sem dúvida o principal elemento de uma delimitação de fronteiras distritais. Bem sabemos porém que se deve meter em linha de conta a população, mas ainda aqui achamos o distrito de Lisboa com 523.000 habitantes, e os três distritos a que nos estamos referindo com 1.014.000 habitantes. De modo que, ainda tendo apenas em vista a população, se deveria suprimir um dos distritos do Minho.

Eis aqui pois o sentido em que desejaríamos ver debatida a questão entre Braga e Guimarães, fora de qualquer preocupação propriamente política. Primeiro, por que o problema é apenas administrativo; segundo, porque fazê-lo partidário tem um risco grave — lembrem-se disto os nossos amigos — é que o Governo, vendo-se perdido na opinião, escolha essa questão especial para cair.

De tal forma escapará à queda que as coisas lhe estão preparando, e sairá incólume do desabamento que precipitou com as suas loucuras e com os seus crimes. Evitará o justo castigo dos seus malefícios, podendo organizar mientras vuelve todos os artifícios, todas as armadilhas, todos os sofismas, todos os cálculos mentirosos, com que preparará a sua restauração. A história de 1879-81, já o temos dito, não pode repetir-se, sob pena de morte para o Partido Progressista.

É necessário que o Governo caia, mas é necessário que caia esmagado pelas ruínas, pulverizado, condenado clara e unanimemente pela opinião pública que, mal de nós, só forma juízos decisivos quando a aguilhoam as aflições das crises angustiosas. É necessário que caia, mas quando já não for lícito a ninguém ter a sombra de uma ilusão, ou o vislumbre de uma esperança, nas mentiras descaradas da gente fontista.

Oliveira Martins, A Província, vol. II, Guimarães & C.ª Editores, Lisboa, 1958, págs. 65-68. Texto inicialmente publicado na edição de 21 de Janeiro de 1886.

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