Eduardo de Almeida no centenário de Martins Sarmento

Eduardo de Almeida discursando junto ao túmulo de Francisco Martins Sarmento (1933)

Notável orador, Eduardo de Almeida era chamado a intervir nos mais diversos actos públicos, onde a sua palavra se fazia escutar, conquistando o respeito e admiração das audiências. Aqui fica um exemplo da sua oratória, o discurso que proferiu no dia 9 de Março de 1933, data em que se celebrava o centenário do nascimento de Francisco Martins Sarmento, junto à sua sepultura, no cemitério de S. Salvador de Briteiros:

"Careceria de piedosa justiça este formoso e memorável dia da consagração espiritual de Sarmento – pois assim julgo o objectivo da Festa do Centenário –, se não viéssemos aqui, em romagem de comovida saudade, junto do túmulo, onde ele jaz, no descanso da eterna noite, a par da sua desvelada companheira.

A urna, já enegrecida pelo tempo, contém só um cadáver – o cadáver do homem, a máscara plástica do homem, o que do homem é transitório: o seu espírito, como o seu génio de investigador, venceu a morte, exceliu-se na imortalidade. Venceu a morte o seu génio de investigador, trazendo ressurgido à vida da meditação científica o ciclo de epopeia bárbara das civilizações pré-históricas, e animando de almas os castros soterrados e ermos.

Depois, na descida das citânias, ao tornejar os pobrezinhos casebres das aldeias, cujas pedras, tisnadas e humildes, assemelham ruínas que desafiam as ruínas dos séculos efémeros; ao ver, na lenta volta da faina, à hora suavemente inquieta do crepúsculo, o nosso íncola, tão duro e forte no trabalho, tão amoroso e apegado à terra – à sua courelazinha pequenina e linda, na paisagem por seu labor modelada e colorida – que passou sob os vendavais do tempo, as arremetidas do inimigo e o sismo das convulsões sociais, sem se desenraizar; e ao encontrarem seus olhos, das janelas da sua casa em Guimarães, o velho Castelo e as velhas muralhas, inquiriu, delineou e ergueu a heróica ascendência, a tenaz continuidade, a rota e o sonho do Lusíada.

Uniu a morte com a morte e consorciou estas duas mortes com a vida: a vida dos rudes pelejadores das citânias, a vida dos esforçados guerreiros de S. Mamede e a vida obscura, resignada, laboriosa do nosso camponês, do nosso homem – o próprio nome, o mesmo sangue, toda a História e o Destino de Portugal.

Assim o seu espírito venceu a morte.

Além de um claro e alto espírito, Martins Sarmento, dotado de uma assombrosa cultura, profunda e fecunda, com a fina sensibilidade dos temperamentos artísticos, foi, em época e meio de estagnamento cataléptico, um português de lei, de honradez intransigente e ingénua, um homem virtuoso e justo, com a virtude da ousada e latejante defesa das causas e direitos do pensamento e com a justiça da sua afectiva dedicação pelas classes trabalhadoras e desprotegidas. Se as suas elaborações mentais, talvez apaixonadas, mas friamente conduzidas por métodos rigorosamente científicos, remontavam e dilatavam os horizontes da Pátria, mostrando a unidade e continuidade do nosso povo, a sua inteligência vivíssima e previdente ansiava por que a esse povo se desse a sorte condigna.

Foi um amorável coração – e o seu coração também venceu a morte. As academias celebram a obra do seu espírito superior; a obra magnífica do seu coração – a essa a rememoram as criancinhas nas casas da escola.

Peregrinos desta belíssima jornada, trazemos-lhe à sepultura as dores da nossa saudade e as flores da nossa gratidão – e eu não devo mais profanar com vãs palavras o nosso sentimento e o recolhido silêncio da morte."

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