Vista de Guimarães, a partir de Vila Pouca. Gravura aguarelada de Casanova.
Num texto que fazia a primeira página do número único do jornal Guimarais, editado no dia 23 de Julho de 1933, pelos grupos excursionistas 20 Arautos de D. Afonso Henriques, Infalíveis e Fouce, o escritor Eduardo de Almeida publicou um texto em que descreve as três horas de Guimarães. Aqui fica:
Tem cada terra a sua hora. Poderá não ser a melhor para a observar: é a mais própria para a compreender. Ver só de qualquer terra o quadro da paisagem e o amontoado de pedra não é senti-la. Muitas vezes leva a ignorá-la mais profundamente. Já se escreveu com acerto — e coisa bem natural – que os estranhos nos vêem melhor. Ordinariamente, de outro modo, o que é diferente. Mas eu falo no ver com a penetração subtil, que procura a íntima estrutura.
São curiosas de romance psicológico as horas das cidades, as diversas horas de cada dia, no seu quadrante compassado e monótono, em que vem a passar a flagrantemente reveladora. Hora das almas, hora na alma da vida colectiva.
Talvez, com certeza muito imperfeitamente, eu conheço em Guimarães três horas, e tenho sempre duvidado e hesitado em qual das três haja mais carácter, para, de entre elas, definir ou escolher a nossa hora.
A Guimarães de ao abrir da manhã é o solar fidalgo de uma boa quinta minhota, com panos de soberba arquitectura, grandes traços de ruínas e sobreposições restauracionistas várias. É quando entram as leiteiras, e, para o mercado, as camponesas dos cestos da hortaliça e da fruta; quando os lavradores acordam as casas dos senhorios, para despejarem os carros do milho, das pipas de vinho, dos molhos de lenha – e tomam toda a rua e os largos como eidos. As lojas espreitam-nos e chamam por eles com o bacalhau e as chitas. É o arruído e o pitoresco da aldeia, uma aldeia maior em plena aldeia, porque se não andam dois passos sem topar uma nesga de terra folhada de milho, a latada de vides, árvores de fruta, socalcos por onde a água escorre gorgolejante, a galinha e a sua ninhada de pintainhos. A feição da antiga vila de Vimaranes, a quinta da Condessa Dona Muma, ficou-nos nitidamente gravada, com a sua tenacidade rude, o seu ar forte de saúde, a simplicidade colorida e alegre do trabalho agrícola.
A outra hora é no fim da tarde, antes do crepúsculo – que, visto pelo monte de S. Pedro até à Conceição, ou da Costa a Urgezes e Santo Amaro é apenas maravilhoso – quase ao fim da tarde, à saída das fábricas. Coleiam as operárias como um extenso rio humano, operárias da cidade e operárias vindas da aldeia, em vários braços desconfluentes. Há um silêncio maior, como se os estremeções das máquinas, agora paradas, tivessem, nas horas de trabalho, animado o fragor das ruas e praças, afinal quase despovoadas, então, de movimento, e por onde elas vão passando, em grupos, com um riso, uma flor, um olhar, talvez uma lágrima. Grande parte da cidade, que parecia desabitada, enche-se de vida. E essa hora, o sinal da Guimarães fabril, uma colmeia enorme de trabalhadores anónimos, é a Guimarães, o mais forte, independente e progressivo núcleo do trabalho industrial.
Entre estas duas horas, o comum de todas as cidades: as repartições, o comércio, os bancos, os cafés. A indústria doméstica ocupa ainda alguns dos que não têm que fazer cá fora, embora, como em toda a parte, tenda cada vez mais a desaparecer.
São as horas da vida. Mas há uma hora morta sugestivamente encantadora, hora de noite morta, ao luar, junto ao Castelo, a hora da evocação, e do passado, da História e da Lenda, dos castros citanienses e de S. Mamede, a hora do Herói e do Monge, de guerreiros e trovadores, quando a vida agrícola e industrial dorme de cansaço, e as velhas pedras se animam, as velhas pedras daquele ninho soberbo, onde se concebeu e sonhou o sonho de Portugal.
Tenho-me deixado embalar, como num cântico de saudade e esperança, na carinhosa magia desta romagem de fantasmas em noites de luar: talvez seja, para mim, a verdadeira hora de Guimarães. E, não sei porquê, as duas outras, as horas da vida, me parecem tão naturais como se foram irmãs, filhas do mesmo amor e esforço, ouvindo, à distância de séculos, o lavrar da charrua e o bater do linho.
Eduardo de Almeida, 1933
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