Crónica do conflito brácaro-vimaranense - 1

O Conde de Margaride (retrato da juventude)
No dia 28 de Novembro de 1885, os procuradores de Guimarães à Junta Geral do Distrito de Braga Conde de Margaride, Joaquim José de Meira e José Martins de Queirós Montenegro (Minotes) foram objecto de incidentes orquestrados que estiveram na origem de um grave conflito entre Guimarães e Braga, fazendo eclodir nesta cidade um movimento que defendia a saída do Distrito de Braga e a união ao Porto, que teria fortes repercussões regionais e nacionais. Nos próximos tempos, serão publicadas aqui notícias que foram publicadas na imprensa local e nacional, aquando destes acontecimentos.

OS FACTOS
Um facto inaudito, um atentado de que não há exemplo na história dos povos civilizados, acaba da levantar uma barreira incomensurável entre esta cidade e concelho e a capital do distrito.
Todos os comentários são inúteis, todas as apóstrofes de indignação são supérfluas diante da narração dos factos, nua e desataviada,
Narremos pois.
À Junta Geral do distrito fora apresentada uma proposta para a criação do curso complementar de ciências no liceu. No relatório, que precedia a proposta, dizia-se que a despesa a fazer, pelo distrito, com a criação das cadeiras daquele curso, não seria superior a onze mil e tantos réis. Era um ovo por um real, e foi isto mesmo o que deu ocasião a que muitos procuradores se lembrassem de que seria conveniente averiguar, antes de se votar a criação do curso, quanto ele poderia custar, e quais as condições da sua criação – se se permitiriam, por exemplo, os exames de saída no liceu, se haveria necessidade de criar museus e laboratórios, etc. Não se impugnava a criação do curso: pretendia-se apenas adquirir a certeza de que as circunstâncias económicas do distrito e dos concelhos não seriam agravadas com uma despesa quantiosa verdadeiramente inútil. Cremos até poder afiançar que um dos procuradores por Guimarães, o sr. Conde de Margaride, dissera que votaria incondicionalmente a proposta, acrescentando-se dez vezes o encargo que nela se dizia ficar onerando o distrito, se lhe garantissem que o distrito nada mais teria a pagar senão esse encargo assim multiplicado.
Foi o procurador por Barcelos, o snr. Faria Machado, que apresentou uma proposta motivada e fundada nas razões acima expostas. Ambas as propostas foram à comissão de administração e fazenda, obtendo parecer favorável a do procurador Faria Machado, e considerando-se a outra prejudicada.
Tendo posteriormente o snr. Faria Machado retirado a sua proposta, que, note-se bem esta circunstância, tinha sido calorosamente defendida pelo sr. Peixoto do Rego, procurador por Braga, estava naturalmente indicado que voltaria à discussão outra, que fora dada para a ordem do dia na sessão de 28.
Nesta sessão, lida a acta da sessão antecedente, notou o procurador por Guimarães o snr. Conde de Margaride que nela se mencionavam como resolvidos assuntos de que se não tinha tratado. O sr. Luís do Vale, procurador por Vila Verde, natural e residente em Braga, aproveitou o incidente para invectivar rude e insolitamente sr. Conde e os demais procuradores por Guimarães, dizendo que se ss. exc.as ignoravam que aqueles negócios estavam resolvidos, como se dizia na acta, era porque, em lugar de assistirem à sessão, andavam concitando os ânimos e criando embaraços contra a aprovação da proposta relativa à criação do curso, e dirigindo-se ao público, apontando-os e expondo-os como fautores das relutâncias criadas contra aquela aprovação. O sr. Conde replicou energicamente repelindo as afrontas do energúmeno, vindo por fim a averiguar-se, por declaração do sr. Vasco Jácome, procurador por Braga, que realmente eram rigorosamente exactas as observações do nosso digno procurador, porque não se havia tratado dos assuntos que na acta se davam como resolvidos. Mas os nossos procuradores, provocados por maneira tão insólita, estranharam com vigor a provocação, tanto mais quanto o provocante, declararam eles, só por condescendência poderia estar ali juntamente com seu cunhado o sr. Cunha Reis. Nesta ocasião, o sr. Cunha Reis saiu da sala e voltou dizendo que também se devia averiguar se o sr. Conde de Margaride poderia funcionar juntamente com seu primo José Minotes, parentesco que segundo o Código Administrativo nenhuma incompatibilidade oferece para as corporações administrativas. A sessão, tornou se ligeiramente tumultuosa, e levantou-se por falta de número.
Agora, em parêntesis, umas pequenas circunstâncias anteriores, que dão muita luz sobre o que se passou na Junta e sobre os acontecimentos que se lhe seguiram.
Na véspera tinha havido na cidade umas manifestações, promovidas pelos fautores da proposta, para se fazer pressão sobre a Junta, impelindo-a à sua aprovação imediata e sem restrições. O snr. Procurador Peixoto do Rego havia sido intimado para não comparecer à sessão, sob pena de violências contra a sua pessoa, e de ser demitido de médico do partido da Associação Comercial A sala da Junta, os corredores e pátios do edifício, e o largo fronteiro estavam, à hora da sessão, repletos de gente. Depois, na sessão, o snr. Luís do Vale, a propósito de um incidente que não tinha nada com a questão, invectiva insultuosamente os procuradores por Guimarães, aponta-os e expõe-nos ao furor público, como fautores da relutância contra a aprovação da proposta!
Está fechado o parêntesis. Podemos continuar:
Fechada a sessão, o povo, concitado, levanta rumores de assuada, ouve-se uma estrepitosa música de assobios, e a primeira vítima destes furores do populacho é o nosso procurador Dr. Joaquim José de Meira, que, ao sair do edifício, é apupado pela multidão que se apinhava ali.
Os nossos outros dois procuradores, ao ouvir o que se passava, quiseram sair para compartilharem com o seu colega os perigos da situação, mas foram impedidos por alguns amigos particulares, e ainda se conservaram no edifício talvez meia hora. Depois subiram e andaram a passear na rua próxima ao hotel, muito à sua vontade, sem outro incidente notável. O poviléu continuava cá fora em desordenadas chusmas. Novo rumor de assuadas e de assobios. A onda ia crescendo. Recolheram-se ao hotel que fica ali perto. Enquanto ali se demoraram, uma hora talvez, os grupos que estavam cá fora, foram-se aumentando com novos advindos, e a assuada e os apupos continuaram. Note-se que vão já decorridas horas depois dos primeiros acontecimentos, e que a autoridade policial ainda não tinha aparecido. Note -se mais que no edifício da Junta está um posto de polícia, e que nem um só agente desta tinha intervido ou para dispersar os grupos manifestamente hostis, ou para impedir as assuadas, os apupos e as violências. A autoridade ignorava tudo; a polícia não via nada. Adiante.
Eram 4 e meia horas da tarde. Os nossos procuradores dispuseram-se a regressar a esta cidade. Meteram-se no seu carro, e partiram. A multidão, 2.000 pessoas pelo menos, seguiu-os, num coro interminável de apupos, assobios, e assuada, já misturados com alguns gritos de morra. Ao descerem pala rua de S. Marcos para o campo dos Remédios, algumas pedradas caíram sobre o carro, e os morras aos procuradores e a Guimarães sobrelevavam-se aos apupos. Do campo dos Remédios à rua do Raio continuou-se a mesma cena. Aqui porém, os furores do poviléu concitado recrudesceram. Alguns grupos haviam descido pela rua das Águas para tomarem a frente ao carro, e os nossos procuradores viram-se então cercados. Agora já não eram algumas pedradas, era um chuveiro infernal de calhaus e lama, a cair sobre o carro, e uma selvagem gritaria de morras aos inermes procuradores e à cidade e concelho de Guimarães, que lhes dera o mandato.
As autoridades e a polícia, essas, se estavam ali, faziam coro com as turbas.
O partido a tomar, era um só: – fugir e entregar-se ao destino. Foi o que os dignos procuradores tomaram, perseguidos ainda pela multidão brutalmente enfurecida até fora da cidade, com pedras, lama, e uma horríssona gritaria de morras! E enquanto isto se passava, outros grupos desciam pela rua dos Pelâmes para ver se conseguiam apanhar ainda o carro nos pinheiros da Gregória, na estrada que conduz a esta cidade, o que felizmente não conseguiram, por ele já ter ali passado alguns minutos antes.
Depois, a multidão entrou em Braga, gloriosa do seu procedimento, e cantando por toda a parte os hinos do seu triunfo.
Eis os factos. Já dissemos que lhes não fazíamos comentários, porque eles dispensam-nos, na sua rude e cruel selvajaria. Não lhos faremos pois, e apenas perguntaremos:
Será possível que Guimarães, a quem a capital do distrito deu morras, com a conivência, se não por instigação das suas autoridades, e a quem ultrajou infamemente na pessoa dos seus digníssimos procuradores, será possível que Guimarães continue a fazer parte do distrito de Braga?
[Religião e Pátria, n.º 45, 38.ª série, 3 de Dezembro de 1885]

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1 Comentários

Tiago Laranjeiro disse…
Venham os outros artigos!