O Toural (6)

Há exactamente 350 anos, em meados de 1657, o capitão-mor de Guimarães mandou erigir no terreiro Toural uma polé para que nela fossem “trateados” os soldados fugidos. Se não podemos, por falta de notícias, saber quantos desertores terão sido submetidos aos tratos daquela máquina de suplício, podemos tentar reconstituir como seria o Toural naquele tempo.

O Toural era, nos meados do século XVII, um espaço amplo, uma praça imensa, “uma das melhores do Reino”, no dizer do Padre Torcato Peixoto de Azevedo.

Do lado do nascente corria entre a Torre de S. Domingos (ou da Senhora da Piedade), onde se abria a porta com o mesmo nome, hoje mais conhecida pela Porta da Vila, e a Torre da Alfândega, que se situava no outro extremo, já voltada para o Terreiro de S. Sebastião. Um pouco antes desta Torre, situava-se uma outra porta, o Postigo de S. Paio ou Porta Nova. Do lado voltado a Sul, onde hoje se ergue a igreja de S. Pedro, era fechado por casas (ainda faltavam mais de dois séculos para ser aberta a Avenida D. Afonso Henriques) e confrontava com o Terreiro de S. Sebastião, onde estava a igreja paroquial com o mesmo nome, a abrir-se em direcção ao nascente. Na margem do poente, entre o início da Rua Nova das Oliveiras (Camões) e a Rua de Gatos (D. João I), estendia-se uma linha de casas com alpendres virados para a Praça. Do lado do Norte, entre a embocadura da rua de Gatos e a Torre de S. Domingos, alinhava-se um outro renque de prédios alpendrados.

Naquele tempo, o Toural era um espaço completamente aberto, sem árvore ou quaisquer construções no seu miolo. Somente se erguiam o magnífico chafariz do Toural (actualmente no jardim do Carmo), de 1588, no seu topo virado a Sul, e o Cruzeiro do Fiado, mandado erigir pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, em 1650, na topo Norte.

No século XVII, o Toural era um terreiro, “quase intransitável em tempos invernosos”, como escreveria o Padre Caldas, e ocupava uma área um pouco maior do que a actual, uma vez que as casas situadas a poente e a norte avançariam, ainda na primeira metade do século XVIII, por cima dos alpendres, que foram fechados, com a apropriação privada do espaço público.

Mais do que qualquer outra praça da vila, o Toural era já o coração de Guimarães, por onde circulava o essencial da sua vida. Um escritor do século XIX definiria o Toural como o “centro da cavaqueira indígena”. Era nos assentos de pedra que rodeavam o chafariz quinhentista que os vimaranenses tinham por hábito apanhar a fresca e conversar amenidades. Todos os actos importantes, festivos, lutuosos ou tumultuosos do quotidiano de Guimarães passavam pelo Toural: os nascimentos e os casamentos na família real enchiam a praça de luminárias e foguetório. Ali tinham lugar as principais manifestações políticas, nomeadamente as convulsões ao longo do período das lutas liberais, desde a guerra civil à Maria da Fonte e à Patuleia ou, um pouco mais tarde, à Revolta da Maria Bernarda. Era também no Toural que se ajustavam contas incertas, tendo ficado na memória algumas cenas de pugilato célebres. De uma vez, Francisco Martins Sarmento assestou ali um par de sopapos em certo padre; de outra, algumas décadas mais tarde, o historiador Alfredo Pimenta e o arqueólogo Mário Cardozo mediriam forças num episódio de pancadaria que deu brado no velho burgo.

“Em toda a parte são notórias as grandes festas que os moradores desta vila fazem nesta Praça”, escreveu o Padre Torcato em finais do século XVII. Elementos imprescindíveis das festas do passado eram as corridas de touros (às quais o largo foi buscar o seu nome), que ali se realizavam com frequência, sob qualquer pretexto comemorativo.

O Toural era o centro cívico de Guimarães, e assim continuaria a ser pelo correr dos séculos.

O Toural era também um importante espaço comercial da vila. Sob as alpendradas da praça mercadejavam-se os mais diversos artigos. Por ali não faltavam lojas. Ao longo da muralha, num plano um pouco mais elevado em relação ao resto do terreiro, a que se acedia por escadas, fazia-se a feira dos panos de linho. A feira do pão ou a feira da louça também tiveram lugar no Toural. E era ali também que as doceiras de Guimarães vendiam as suas iguarias, cuja fama chegava longe.

No final do século XVIII, o Corregedor em serviço (que então acumulava esta função com o ofício de Juiz de Fora), pretendeu aforar a particulares toda a extensão de terreno junto à muralha do Toural, para edificação de casas. Não faltou quem reclamasse para a Rainha contra esta intenção, incluindo a Câmara, alegando-se que, caso avançasse, ficaria “diminuída a largura do campo, este perdendo a sua nobreza com que formoseava a vila”. Os aforamentos seriam declarados nulos por D. Maria I. Porém, a Rainha mandou que se demolisse a muralha entre o Postigo de S. Paio e a Torre de S. Domingos, de modo a que os moradores da rua da Arrochela (situada do lado de dentro da muralha) pudessem estender as suas casas para o lado do Toural, “pondo portas e janelas e lojas de comércio na maneira delineada que se remetia, conservando o Campo a sua mesma largura e comodidade para a dita feira” (dos panos de linho). A pedra resultante da demolição da muralha seria vendida, devendo o produto da venda ser aplicado em obras públicas, e principalmente no arranjo das calçadas.

Com o risco que se recebeu de Lisboa, foi erguido o conjunto arquitectónico da ala pombalina do Toural, que o padre Caldas descreveria assim:

“A fachada oriental deste campo, com o aspecto de um só edifício regular e simétrico, de quarenta e quatro portas e cento e vinte e cinco janelas, foi levantada por iniciativa particular, no fim do século passado. No centro desta fachada, alçava-se um majestoso frontão, pousando-lhe no vértice a estátua colossal da Fama, empunhando um clarim de metal. Tanto esta porém, como o frontão, foram posteriormente abatidos; porque o seu peso considerável ia fazendo afastar as paredes da linha de prumo.”

Numa madrugada de Junho de 1869, eclodiu no Toural um incêndio infernal que destruiu todas as casas do seu lado norte, com excepção da que fazia esquina com o lado poente, que era de pedra e de construção recente. Esse incêndio ficaria na memória pelo rasto de destruição que deixou: além dos edifícios destruídos, causou quatro mortos (embora o povo suspeitasse que fossem mais, porque não voltariam a ser vistos uns carpinteiro de fora que então trabalhavam por ali) e centenas de feridos, por força das explosões de pólvora e de gás. Não tardaria muito e novos prédios surgiriam no lugar dos antigos.

O Chafariz do Toural foi desmontado em 1873 (a demolição começou pela calada da noite, certamente porque a Câmara temia a reacção dos moradores). No ano seguinte, seria a vez do Cruzeiro do Fiado, que foi partido durante a desmontagem, dizem que para que não voltasse a ser montado em qualquer outro lugar.

Entretanto, ainda em 1873, o Toural era objecto de renovação, com a aplicação de calçada e a criação de um jardim fechado, com gradeamento, onde se criou um lago e construiu um coreto. Em 1896, o jardim foi remodelado e, em vez do grande lago, ficou com um bacio com um repuxo no meio. As grades do jardim do Toural seriam retiradas em 1911, tendo como destino o novo mercado das Taipas. Na mesma altura, foi transplantada para ali a estátua de D. Afonso Henriques, que estiva no Terreiro de S. Francisco. Em 1940, seguirá para o seu poiso actual, junto ao Castelo. Pelo caminho, perdeu o pedestal de mármore, então substituído por um novo, de granito.

A actual configuração do Toural começou a desenhar-se em 1929, com a aplicação de um novo pavimento, em calçada portuguesa. Depois da colocação no centro do jardim da fonte actual (obra do Arquitecto José António Sequeira Braga, inaugurada em 1953) e da construção do edifício da CGD (1960), o Toural praticamente não voltou a ser mexido.

Entretanto, as árvores foram crescendo e a praça foi ficando mais pequena.

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