A Sociedade Martins Sarmento

Quando começou a divulgar os resultados das prospecções arqueológicas, que iniciou em meados da década de 1870, sobre as ruínas de um velho povoado que nas suas memórias de infância persistia como uma cidade de mouros, Francisco Martins Sarmento afirmou-se como um vulto da primeira linha na cultura europeia de finais do século XIX. A sua obra atraiu a atenção da Europa culta do seu tempo para a Citânia de Briteiros e ajudou a projectar internacionalmente a sua terra, Guimarães.
Para mostrarem o seu reconhecimento, os seus conterrâneos projectaram erguer-lhe um monumento. Sarmento recusou. Perante a persistência dos promotores da iniciativa, o arqueólogo acabaria por aceder à homenagem, impondo uma condição: que, em vez de um monumento, fosse criado um instituto que, assumindo-se como um organismo vivo, prosseguisse uma missão de elevação cultural da população.
Na manhã de 20 de Novembro de 1881, realizou-se numa sala da extinta Assembleia Vimaranense, uma reunião convocada por vimaranenses ilustres daquele tempo (Avelino Germano da Costa Freitas, Avelino da Silva Guimarães, José da Cunha Sampaio, Domingos Leite Castro e de Domingos José Ferreira Júnior). Aí foi decidida a criação de uma associação com que se homenagearia o arqueólogo e cidadão Francisco Martins de Gouveia Morais Sarmento e promoveria o desenvolvimento da instrução primária, secundária e profissional.
Os fundadores explicaram assim o seu projecto:
Poderia erigir-se um monumento em granito ou mármore, abrindo-lhe na base inscrições comemorativas; mas não será um anacronismo que neste século de actividade intelectual prefiramos a inscrição à associação, o mármore a um pensamento em actividade constante, a inércia de uma coluna ao vivido movimento de uma instituição, que deve prosperar se nunca lhe falecer a vossa protecção e a dos nossos conterrâneos?
O monumento pode esboroar-se e desaparecer no fragor das tempestades, ou no vandalismo das guerras; a instituição, se cria raízes, se preenche uma necessidade real, se representa um progresso na educação social, vive além das convules, adquire condições de perpetuidade, permanece enquanto não está satisfeito o seu fim, enquanto se não torna inútil por novos progressos, vivendo ainda assim na memória dos que lerem as páginas da sua história.
Em vez do monumento, Francisco Martins Sarmento foi celebrado com uma instituição que perpetuou o seu nome e a sua obra, representando um inegável “progresso na educação social” para toda esta região. A SMS nasceu como “Promotora da Instrução Popular” e cumpriu o seu desígnio: foi aqui que, em Guimarães, nasceu a formação profissional, incluindo a dirigida para o sexo feminino, o ensino artístico, a educação de adultos. A Escola Industrial Francisco de Holanda e o Liceu de Guimarães têm a sua origem estreitamente vinculada à Sociedade. Daqui partiram acções de alfabetização, nomeadamente no meio rural, por obra das Escolas Móveis promovidas por esta instituição.
Mas a actividade dos pioneiros da SMS foi para além da promoção da instrução popular, através da aprendizagem das primeiras letras ou dos rudimentos técnicos de uma profissão. Desde cedo desenvolveram outras dimensões da produção e difusão da cultura, criando um Museu Arqueológico, que logo se tornou num modelo, abrindo as portas da Biblioteca Pública, lançando uma revista científica, a Revista de Guimarães. Todas estas obras ainda hoje persistem, tendo sabido adaptar-se aos novos tempos.
A Exposição Industrial de Guimarães de 1884 marcou um ponto de viragem no desenvolvimento económico e na industrialização desta região. Foi uma das primeiras iniciativas da Sociedade Martins Sarmento, que a começou a preparar quando ainda dava os seus primeiros passos. Alberto Sampaio emergiu então como a alma mater deste acontecimento que ficou gravado na História da cidade.
A origem das principais instituições culturais vimaranenses passa pela Sociedade Martins Sarmento. É o caso da Biblioteca Pública municipal, que esteve entregue à responsabilidade da Sociedade Martins Sarmento durante 110 anos, desde 1882 até à abertura da Biblioteca Municipal Raul Brandão, em 1992. O núcleo mais importante do actual Arquivo Municipal de Alfredo Pimenta, o Arquivo da Colegiada de Guimarães, também esteve a cargo da Sociedade, em cuja sede deu entrada em meados do mês de Agosto de 1921, transportado em sete carretos de carros de bois.
O mesmo aconteceu com as principais colecções da fundação do Museu Alberto Sampaio. Em 20 de Setembro de 1911, A Direcção Geral dos Negócios Eclesiásticos autorizou a Sociedade Martins Sarmento para receber, por inventário e a título precário, a fim de expor no seu Museu, todas as alfaias e outros objectos de valor histórico e artístico que o Estado confiscara às congregações religiosas e Igrejas do Concelho de Guimarães. No dia 15 de Março de 1920, a Sociedade acolheu também, de acordo com uma portaria do Ministério da Justiça de Julho de 1917, o tesouro de Nossa Senhora da Oliveira, que tinha passado, por confisco, para o património do Estado.
A Sociedade Martins Sarmento detém um admirável acervo patrimonial de interesse cultural relevante, de natureza histórica, arqueológica, arquitectónica, bibliográfica, documental, artística, etnográfica e científica, com elevado significado para a compreensão, permanência e construção da identidade nacional e local. As suas características de antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade definem os traços da sua natureza de repositório da nossa memória cultural colectiva. À sua guarda encontram-se, por exemplo, quatro monumentos nacionais e cinco monumentos arqueológicos classificados como Imóveis de Interesse Público.
Ao longo do tempo, com a persistência da sua acção de defesa e valorização do património e da História de Guimarães, a Sociedade Martins Sarmento contribuiu para a formação nesta terra de uma consciência patrimonial única, que ajuda a explicar o cuidado e o carinho que aqui têm sido colocados na preservação do legado que recebemos dos nossos antepassados, que colheu justo reconhecimento junto da UNESCO.
É verdade que a SMS enfrenta dificuldades para prosseguir a sua missão de protecção e a divulgação do riquíssimo património que tem à sua guarda, porque os meios que gera não são suficientes para fazer frente aos seus encargos. Mas, agora que se prepara para comemorar o seu 125.º aniversário, novos tempos se anunciam, abrindo novos caminhos para que possa prosseguir com o seu rumo de sempre.

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