Trinta anos de reconstituições de paróquias


Nos finais dos anos cinquenta do último século, a comunidade científica despertava o seu interesse para o conhecimento dos mecanismos de funcionamento das populações do passado, com a divulgação dos resultados das primeiras reconstituições de família francesas. Inspirada por esses trabalhos, por essa altura, Virgínia Rau propôs ao Centro de Estudos Históricos da Faculdade de Letras de Lisboa um programa para a investigação demográfica portuguesa, que tinha como objectivo a recolha sistemática dos elementos fornecidos pelos registos paroquiais de Lisboa durante o século XVIII, organizando um ficheiro dos assentos dos três tipos de registos: nascimentos casamentos e óbitos.
Maria de Lurdes Akola Neto, a primeira investigadora portuguesa a divulgar resultados de estudos de demografia histórica baseados no tratamento dos registos paroquiais, constituiu um ficheiro com quase dez mil fichas de actos vitais registados na freguesia de Santa Catarina, em Lisboa, cobrindo o primeiro quartel do século XVIII. Dos conclusões apresentadas, começa a alicerçar-se uma certeza inquietante: em Portugal, não era possível a reconstituição de famílias.
Nas outras Faculdades de Letras, ao longo dos anos sessenta e setenta, foram-se lançando projectos de pesquisa em Demografia Histórica que visavam a reconstituição de famílias, com base na metodologia criada por Fleury e Henry para o estudo da fecundidade legítima das populações francesas do passado. De milhares de horas de trabalho de arquivo, em grande parte realizado por jovens estudantes das licenciaturas em História, resultaram enormes acervos de fichas de actos de baptismos, casamentos e óbitos cujo cruzamento ninguém se revelava capaz de concretizar. Desses ficheiros, o mais que se produziram foram uns quantos estudos de natureza agregativa. Mas nada de famílias reconstituídas.
O principal entrave à concretização das intenções mais ambiciosas de tais projectos residia na natureza das fontes paroquiais portuguesas e no modo muito peculiar como entre nós eram transmitidos os sobrenomes familiares. A metodologia de Fleury-Henry alicerçava-se da regularidade da passagem dos nomes de família de geração para geração. Porém, em Portugal, a norma é a absoluta ausência de regras nesta matéria, como Norberta Amorim constatava, no início da década de 1970, ao escrever que um pai que assina Pires, pode ter um filho que se chame Fernandes e outro Esteves, por exemplo, herdando estes apelidos da mãe, avós e até padrinhos.
Encontrado o nó da meada, a autora iniciou um tentativa de reformulação das bases metodológicas da investigação em Demografia Histórica, adequando-as às especificidades das fontes portuguesas e introduzindo um conjunto de procedimentos simples, intuitivos e comprovadamente eficazes, que irão permitir a reconstituição de famílias em horizontes espaciais e temporais alargados. As famílias passaram a ser indexadas não pelo sobrenome do pai, mas pelo seu nome próprio (aquele que é imutável e que acompanhava os percursos de vida daqueles homens desde o baptismo até à sepultura). Uma outra inovação frutuosa resultou do abandono da recolha dos registos de baptismo em fichas individuais para posterior cruzamento, que resultava no registo de informação redundante sempre que um mesmo casal tinha mais do que um filho. Foi assim que surgiram os ficheiros constituídos por folhas de papel cavalinho unidas por argolas, que são a imagem de marca do método criado por Norberta Amorim. Neles, as famílias começavam a ser reconstituídas logo no processo de levantamento da informação no Arquivo, a partir dos registos de baptismo, com um significativo ganho de tempo, eficiência e rigor nos resultados finais.
Este conjunto de técnicas de pesquisa e de tratamento de informação, depois baptizado de Metodologia de Reconstituição de Paróquias, lançou as suas bases a partir do esforço inicial de uma investigadora isolada, foi ganhando aderentes (hoje contam-se por dezenas os investigadores que baseiam as suas pesquisas nesta metodologia), vencendo resistências, conquistando o reconhecimento e marcando presença sistemática em publicações e encontros científicos nacionais e internacionais. Ao mesmo tempo, esta metodologia revelou grande capacidade de adaptação ao acelerado processo de transformação que atinge a pesquisa científica nos tempos que correm, abrindo-se à inovação e aproveitando os recursos disponibilizados pelas novas tecnologias da informação, socorrendo-se das contribuições dos especialistas em informática da Universidade do Minho.
O Núcleo de Estudos de População e Sociedade, com as suas iniciativas, a produção dos seus investigadores e as suas linhas de publicações, insere-se num percurso cujos primeiros passos se deram nos idos de 1971, com o estudo demográfico de Norberta Amorim sobre Rebordãos e a sua população nos séculos XVII e XVIII. Passam agora trinta anos.

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