A População de Guimarães no séc. XVI

O Triunfo da Morte, de Pieter Bruegel, O Velho
A aproximação ao conhecimento do estado da população de Guimarães para períodos anteriores ao século XVII é um exercício complicado. As fontes primárias com que trabalha a Demografia Histórica para construir as suas estatísticas - os registos paroquiais de nascimentos, casamentos e óbitos - ou são muito lacunares ou, simplesmente, não existem. E é esta última situação a que mais ocorre, não sendo possível para tempos recuados, a não ser em situações muito concretas e localizadas, o emprego de qualquer metodologia que permita construção de bases estatísticas objectivas e credíveis.
Vale-nos D. João III que mandou fazer o primeiro levantamento sistemático da população portuguesa, o “Numeramento de 1527”. Pretendia o rei saber, em relação a cada povoação do território português, “quantos moradores há no corpo da cidade ou vila e arrabaldes e quantos no termo declarando quantas aldeias há no dito termo por seus nomes e quantos moradores há em cada uma delas e assim quantos vivem fora delas em quintas, casais e herdades” (FREIRE 1905:245). Em Guimarães, o processo de recolha de dados tropeçaria na extravagância arrogante de D. Jaime, Duque de Bragança, que, fazendo valer as suas prerrogativas senhoriais, desafiou a autoridade real e impediu que o escrivão enviado pelo Corregedor da Comarca procedesse ao arrolamento da população. Apenas quatro anos depois, entre Outubro e Novembro de 1531, se faria a contagem, da qual se incumbiram as autoridades locais.
Guimarães foi então descrita como uma vila “muito bem cercada de muros e torres fortes de cantaria”, com um castelo “muito forte” e “grandes arrabaldes” (FREIRE 1905:271). A população do núcleo urbano (incluindo os arrabaldes - rua de Gatos, Toural, rua Nova das Oliveiras, Molianas, rua de Couros, Campo da Feira, Salvador e Santa Luzia), distribuía-se por 1405 fogos, a que corresponderiam aproximadamente seis mil habitantes. Com esta dimensão, Guimarães era o segundo maior centro urbano da região de Entre Douro e Minho, dando razão a João de Barros que, por aquela época, descreveria a vila de Guimarães como uma “das quatro melhores do Reino” (BARROS 15_ _:70). Naquele tempo, a Norte do Rio Douro, o contingente populacional de Guimarães apenas era superado no Porto; até à linha do Tejo, só Santarém e Lisboa eram habitadas por mais gente. Na mesma altura, a população de Braga era pouco mais de metade da de Guimarães, que se destacava por uma vida urbana intensa e florescente.
O termo de Guimarães estendia-se por um pouco mais de uma centena de freguesias, uma boa parte das quais hoje extintas ou integradas nos concelhos limítrofes; parte das paróquias inventariadas no “Numeramento” revelam-se de identificação muito problemática. Da análise dos resultados deste censo resulta que a principal marca da ocupação humana do território vimaranense era a dispersão da população: no “Título do Numeramento” de 1527, dá-se conta de que “não há no termo desta vila nenhum lugar nem aldeia junta, somente por casais e quintas apartados uns dos outros vivem os moradores das freguesias”. Nenhuma das freguesias rurais de Guimarães albergava mais do que uma centena de fogos. Em média o número de habitantes de cada uma das paróquias do termo rondava a centena e meia de almas. Ao todo, contaram-se 3552 fogos disseminados pelo espaço rural vimaranense, o que permite calcular uma população rural de aproximadamente quinze mil habitantes (FREIRE 1905:271-2).
Só por aproximação será possível medir a densidade populacional de Guimarães no século XVI, uma vez que não estão claros quais seriam os exactos limites da sua circunscrição territorial no período quinhentista. A traço grosso, em presença dos dados disponíveis, parece seguro poder avançar-se que a zona urbana deveria albergar uma população que não andaria longe de 200 hab./km2, para o termo rural esse valor deveria aproximar-se dos 40 hab./km2, enquanto que, para todo o território concelhio, a ocupação do território deveria corresponder a um pouco mais de 55 hab./km2. Estes valores colocavam Guimarães como o concelho português com mais elevada densidade populacional aquando do “Numeramento” de D. João III.
No início do século XVI, Mestre António físico e cirurgião, de Guimarães, escreveu um “Tratado sobre a provincia dentre Douro y Minho e suas auondanças” (RIBEIRO 1959), onde descreveu a região onde se situa Guimarães como uma horta onde “nunca houve fome segundo perfeitamente vemos e ouvimos dizer que houve em outras muitas partes por que em outras partes falecendo o trigo não têm as gentes outras coisas a que se socorrer e nesta comarca posto que faleça o trigo, não falece o centeio, nem o milho, nem o painço, nem o orjo [cevada], nem os legumes [...] e todas maneiras de verduras que se possam nomear, e todas as maneiras de frutas” (RIBEIRO 1959:448). Com uma tal prodigalidade de meios de sustento à sua disposição, aqui encontravam os homens as condições mais propícias para se reproduzirem e alcançarem uma longevidade lendária. Nesta região, segundo o Mestre António (RIBEIRO 1959:457), as mulheres davam à luz até aos 50 anos de idade, parindo (e vingando) vinte criaturas, enquanto que, nos outros lugares, não nasceriam mais que dez...
É hoje claro que esta região do Minho revelava, ao longo do Antigo Regime, uma grande vitalidade demográfica, resultante das excepcionais condições de sobrevivência que oferecia às suas gentes. Todavia, a descrição que dela faz o cirurgião vimaranense (que será repetida por todos os monógrafos que escreveram sobre estas terras até ao século XIX) está carregada de exagero. Não é verdade, por exemplo, que aqui nunca houvesse fome.
Apesar da benignidade da terra, as gentes de Guimarães viveram, ao longo de todo o século XVI, atormentadas pelo medo de um flagelo aterrador, em relação ao qual não dispunham de quaisquer meios de defesa eficazes: a peste.
Entre os homens de quinhentos perdurou memória da peste que o Padre Torquato Peixoto de Azevedo situa no ano de 1489, e que esteve na origem da procissão da “Candeia” ou do “Rolo”: naquela ocasião, para tentar aplacar a peste, o Cabido e a Câmara fizeram uma cortejo que cercou a vila com um rolo de cera branca, depois conduzido em oferenda ao Espírito Santo. Esta procissão, que saía às ruas na véspera do domingo do Espírito Santo, durou até ao ano de 1866 (GUIMARÃES 1906:54).
A primeira grande epidemia de quinhentos, lavrou entre os anos de 1507 e 1509. Naquele momento, o único remédio foi a fuga das gentes: a vila ficou tão despovoada, “que dentro dela não ficou coisa vivente”. Uma grande parte da população da vila recolheu-se na encosta do monte de Santa Catarina, no terreno onde foi erigida a ermida a S. Roque (um dos santos protectores contra a peste), cujo espaço ficou pejado de sepulturas de vítimas da “pestelença”. Quando já não havia risco de contágio, e antes de regressarem a suas casas, os homens de Guimarães lançaram nas ruas da vila, por alguns dias, o gado que encontraram nos arredores, para que “com o seu bafo sanassem as partes infeccionadas” (AZEVEDO 1692:352).
No ano de 1531, pairou novamente sobre Guimarães a ameaça da peste, com a chegada de notícias que anunciavam que dizimava as gentes da Galiza, por onde entrava em Portugal. Fosse pelas medidas tomadas pelas autoridades locais, fosse por qualquer outra razão, este surto não terá alcançado terras de Guimarães (GUIMARÃES 1906:55).
Em 1574 grassou a fome em Guimarães, a qual se prolongou pelo ano seguinte, altura em que, entre Abril e Agosto, Guimarães terá sido atingida por uma peste particularmente virulenta, a qual, segundo o relato do jurisconsulto Manuel Barbosa (AZEVEDO 1692:353), terá fulminado sete mil pessoas do concelho de Guimarães.
Vinte anos depois, eclodiu um novo surto de peste. Nas casas dos empestados foram colocados guardas, que impediam qualquer contacto susceptível de propagar o contágio. O mesmo se fez nas portas da vila. Os que ficaram, vestiram-se de bocaxim e queimaram “muitos perfumes”, cuidando que assim se poderiam livrar da pestilência (AZEVEDO 1692:353). Por esta vez, a peste não terá causado grandes danos.
O século não terminaria sem que Guimarães fosse atingida por uma grande epidemia, a última crise de mortalidade catastrófica assinalada por estas terras. Por longo tempo, 1599 seria conhecido como “o ano da peste”. Atemorizada, toda a gente que pôde fugiu para fora de portas. No monte de Santa Catarina foi criada uma “Casa de Saúde”. Não há meios para contabilizar quantos terão sido os que morreram nesta peste. Com os registos disponíveis nas freguesias de S. Sebastião e Azurém, Norberta Amorim pôde contar mais de quatro centenas de mortos aquando desta epidemia, o que corresponderia a cerca de um terço do total da população de ambas as paróquias (AMORIM 1987:287).
Mais uma vez, era a inclemência da morte exercendo o seu ofício de regulador do equilíbrio da população.

BIBLIOGRAFIA
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