De há alguns anos a esta parte, Guimarães tornou-se num caso de estudo internacional. Um adjectivo tem sido repetido vezes sem conta para classificar a intervenção urbanística no Centro Histórico de Guimarães: exemplar. O esforço desenvolvido foi agora consagrado com a integração do centro Histórico no roteiro da UNESCO dos sítios classificados como património da humanidade. Pelo cabedal de prestígio histórico e cultural de Guimarães, agora consolidado internacionalmente por um organismo da Organização das Nações Unidas, e pelo seu indiscutível vínculo às origens da nacionalidade portuguesa, esta terra tem o direito de assumir a condição simbólica de capital histórica de Portugal.
O nascimento da consciência patrimonial vimaranense remete-nos para o último quartel do século XIX, com as intervenções dos homens que viriam a criar a Sociedade Martins Sarmento. Data dessa época a primeira intervenção de restauro que encontrámos documentada em Guimarães: as obras de recuperação da igreja de S. Miguel do Castelo, dirigidas por Martins Sarmento, que seriam objecto de reconhecimento nacional. Ao longo do tempo, os modelos a que obedeceram os restauros de património sempre estiveram sujeitos a modas, algumas das quais responsáveis por soluções que hoje se consideram lastimáveis, de que são exemplo as intervenções no miolo urbano de Guimarães e na colina do Castelo quando, em meados do século XX, se procedeu à abertura de grandes espaços, através da demolição do velho casario: com entulho das casas arrasadas, foi sepultada uma boa parte da memória da cidade. Nas intervenções agora distinguidas, também não foi seguido o modelo adoptado, em tempos mais recentes, com a construção da Pousada de Santa Maria da Oliveira, de que resultou um edifício fingido, moderno mas a imitar a traça do casario do velho burgo.
A requalificação urbana do Centro Histórico de Guimarães conduziu à recuperação do património degradado, preservando as marcas do tempo e harmonizando o novo com o velho. Nunca houve a ilusão de se estar perante uma tentativa de recriação da feição urbana vimaranense dos finais da Idade Média, onde necessariamente haveriam de ressurgir as casas cobertas de colmo, expostas às agruras das intempéries, e ruas e vielas pestilentas, muitas vezes transformadas em chiqueiros por onde cirandavam cães, galinhas e porcos, num tempo em que não existia abastecimento público de água potável nem sistema de saneamento, onde os despejos de imundícies domésticas eram feitos directamente para a via pública, com recurso ao ritual matinal da água vai. Uma cidade onde hoje ninguém quereria viver.
Em boa verdade, aquilo que em Guimarães tem sido feito é muito mais do que uma operação de restauro: em muitas das intervenções, procedeu-se à construção de património novo, com respeito pelas rugas que o tempo tem acentuado nas velhas casas, sem se cair em propensões museológicas. Nas últimas décadas, as intervenções no Centro Histórico, coordenadas pelo GTL, obedeceram a conceitos diferentes e inovadores. O que se construiu de novo, surgiu com a intenção de preservar e valorizar o antigo. Os arranjos das velhas praças encontraram soluções que contribuíram para cimentar a ideia de unidade orgânica da estrutura urbana do velho burgo vimaranense, permitindo que o centro cívico da cidade fosse regressando para a velha Praça Maior e para a Praça de S. Tiago. Entretanto, as casas continuaram habitadas pelos seus moradores de sempre, e Guimarães não padeceu de um dos problemas que têm conduzido à agonia muitas das cidades contemporâneas: a desertificação dos centros.
Cada uma das pedras da velha vila de Guimarães é um repositório da memória da gente que por aqui passaram no transcurso do tempo. As casas, as praças, as ruas, as vielas ocultam as histórias de vida dos homens e das mulheres que as povoaram, e que, de geração em geração, foram erigindo o património que nós recebemos como herança: os edifícios, a estrutura urbana, mas também a história, as tradições, a gastronomia, (desde o pão até ao vinho, passando pelos doces manjares das freiras de Santa Clara), o artesanato, as festas populares, as manifestações da religiosidade.
Em tempos onde conceitos como globalização, mundialização e massificação cultural estão cada vez mais presentes no quotidiano, e onde é manifesta a tendência para o esmagamento dos traços de identidade locais e regionais, é ainda possível encontrar na cultura ancestral vimaranense respostas que poderão conduzir a soluções inovadoras, capazes de mobilizarem as gentes da terra, além de gerarem novas oportunidades de emprego e de se constituírem em factores de atracção turística. Para tal será necessário fazer, ao nível da cultura imaterial, algo de semelhante ao que se fez na recuperação arquitectónica do centro histórico (embora com custos económicos infinitamente menores): evitar que a erosão dos tempos continue a exercer o seu efeito de desgaste sobre a cultura tradicional, recuperando o que houver interesse em recuperar e introduzindo as adaptações que os tempos que correm justificarem. Festividades como as Nicolinas, a Santa Luzia das passarinhas e dos sardões, o Carnaval, os Santos Populares, com algum esforço de investigação histórica e etnográfica e o correspondente investimento organizativo e promocional, podem tornar-se em momentos em que a cidade, para lá do tempo das Gualterianas, salvaguarde a sua matriz cultural e se afirme como pólo de atracção de fluxos turísticos.
Não conheço nenhuma outra terra cujas gentes tenham uma relação tão especial com a sua história, que aqui é frequentemente motivo de paixões arrebatadas. Um dos reptos lançados pela nova condição de Guimarães constitui um chamamento para o investimento no estudo e divulgação, especialmente entre as gerações mais novas, das nossas raízes históricas e culturais. Já não nos deve bastar que a cidade viva à sombra das suas glórias passadas, da sua história. Guimarães tem hoje espaço e massa crítica para o lançamento de projectos de investigação inovadores em áreas como a História e a Antropologia, que contribuam para a valorização do património colectivo e para que se dê alimento ao crescente do interesse pelo conhecimento da realidade vimaranense, potenciado pela classificação da UNESCO. Olhando para o futuro, impõe-se assegurar que as nossas gentes não deixem quebrar os laços com a herança do seu passado.
Com o novo estatuto mundial, faz-se agora notar com maior nitidez a ausência de um Museu de História da Cidade em Guimarães. Ao contrário do projecto de criação do museu dedicado a D. Afonso Henriques, que cada vez mais se constitui como uma utopia, este Museu tem asseguradas as condições de exequibilidade. Antes de mais, porque não há falta de espólio e porque não exige grande investimento material. Há alguns anos, a Sociedade Martins Sarmento sugeriu à Câmara Municipal a sua instalação no Largo da Oliveira, na antiga casa da Câmara, dando conta da sua disponibilidade para a cedência do acervo relacionado com a história de Guimarães que tem à sua guarda. Tal Museu poderia funcionar como um centro explicativo da cidade património mundial. A passagem dos cento e cinquenta anos sobre a data da elevação de Guimarães a cidade (em 2003) seria um excelente momento para a concretização de um tal projecto.
O título de Património Cultural da Humanidade constitui um justo reconhecimento de um trabalho de recuperação e conservação modelar, que honra Guimarães e as suas gentes, e em particular os responsáveis técnicos e políticos que ao longo de mais de uma década deram corpo a uma ideia que alguns, demasiado cedo, classificaram quase como um devaneio delirante. Os obreiros deste triunfo já têm lugar reservado nos anais da história vimaranense. A hora é de júbilo e celebração, mas sempre com a consciência de que tamanha honra constitui um importante compromisso para o futuro, propiciando a concretização de novos projectos e a resposta a novos desafios.
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