Luís do Espinhal, João de Mascotelos: dois ilustres Oliveira Guimarães


A visita à vila do Espinhal, no concelho de Penela, no dia em que se completavam 100 anos sobre o dia em ali nasceu o espinhalense-conimbricense-vimaranense J. Santos Simões, levou-me à Casa do Castelo, da família Oliveira Guimarães. No regresso, confirmei a convicção, que me acompanhou ao longo da tarde, de que haveria uma relação entre aquela família e Guimarães (até hoje, ainda não encontrei ninguém chamado Guimarães que não tivesse ancestrais nesta cidade minhota ou na sua envolvente). Como já escrevi aqui, o vínculo dos Guimarães do Espinhal à terra vimaranense não só existe, como remete, do lado vimaranense, para uma personalidade com uma enorme relevância cultural e política que, tal como Santos Simões, também foi presidente da Sociedade Martins Sarmento (SMS).

Faltava acrescentar que o escritor Luís de Oliveira Guimarães, que nasceu na Quinta do Castelo, na vila do Espinhal (Penela) no dia 9 de Abril de 1900, e viveu a maior parte da sua longa existência em Lisboa (aí faleceu, quase centenário, no dia 5 de Maio de 1998), não ignorava as suas raízes no Espinhal.

Há quem julgue, por amáveis razões literárias, nascido no Chiado. Não. Eu não nasci no Chiado. Não nasci sequer em Lisboa. Os meus olhos abriram-se para o mundo numa aldeia (hoje vila) situada a três dezenas de quilómetros de Coimbra, no concelho de Penela, a multi-secular Penela que de D. Afonso Henriques recebeu a sua nobre carta foraleira, e em cujas armas, sobre campo azul, avultam as três hieráticas torres de prata da antiguidade, da dignidade e da tenacidade. A terra onde nasci chama-se Espinhal, nome que cheira ao mesmo tempo a espinheiro, a urze, a alecrim, a rosmaninho, a giesta, a pinheiro bravo.

Mas o Oliveira Guimarães do Espinhal também não ignorava as suas origens vimaranenses, adquiridas por via paterna e inscritas no seu nome, nem que era parente de um destacado historiador, arqueólogo e político vimaranense, João Gomes de Oliveira Guimarães, o Abade de Tagilde, que chegou a conhecer na infância. Quando, em 1950, a Sociedade Martins Sarmento anunciou a intenção de homenagear o sábio vimaranense, Luís de Oliveira Guimarães escreveu de Lisboa à direcção desta instituição, “congratulando-se, como parente do saudoso Abade de Tagilde, com a projectada homenagem que esta Sociedade resolveu prestar ao erudito Investigador”. A sessão solene que, no dia  19 de Dezembro de 1953, assinalou o centenário, teve como orador principal o advogado e escritor Eduardo de Almeida, que leu uma carta do escritor espinhalense, seu íntimo amigo, que lhe pedira para o representar na cerimónia.

Por esses dias, publicou, no Notícias de Guimarães (o mesmo jornal onde, alguns anos mais tarde, um outro espinhalense, o seu amigo J. Santos Simões, encetaria uma intensa colaboração, que se estenderia pelas décadas seguintes), um pequeno texto sobre o seu primo João Gomes de Oliveira Guimarães, onde evocava as memórias que guardava do autor dos Vimaranis Monumenta Historica, que conhecera em criança (o Abade de Tagilde faleceu em finais de 1912, quando o pequeno Luís tinha 12 anos de idade):


O Abade de Tagilde

Pede-me o «Notícias de Guimarães» algumas palavras sobre o Abade de Tagilde cujo primeiro centenário do nascimento passa agora, a 29 de dezembro. É enternecidamente, que as escrevo. Eu sou dos poucos parentes, que ainda restam, do Abade de Tagilde, João Gomes de Oliveira Guimarães, e, segundo penso, o único que usa os mesmos apelidos que ele usou. Quando o Abade de Tagilde morreu era eu novo ainda; mas, porque as recordações da mocidade se gravam, em regra, na nossa memória, com mais nitidez do que as da própria maioridade, lembro-me muito bem dele e estou a vê-lo e a ouvi-lo, neste momento em que escrevo, como o vi e ouvi quando me foi dada a ventura de o conhecer. Era um homem bondoso, — e era um homem sabedor. Creio, porém, que a sua bondade superava ainda a sua erudição. Não me compete, entretanto, por razões compreensíveis, fazer o elogio das suas virtudes. Quero apenas desfolhar, nesta hora evocativa, o meu ramo de flores sobre o seu culto espiritual e agradecer ao “Notícias de Guimarães”, ao qual tiro rasgadamente o meu chapéu, o ensejo, que teve a amabilidade de me proporcionar, de agradecer todas as homenagens em louvor dum dos meus parentes mais queridos.

Luís de Oliveira Guimarães.

Notícias de Guimarães, 27 de Dezembro de 1953

Como se percebe, Luís de Oliveira Guimarães desconhecia que o apelido Oliveira não tinha sido herdado da sua família da quinta de Bugalhós, em Mascotelos, onde o seu avô Domingos Alves Pereira Guimarães nasceu, em 1826 —  a mesma casa onde, 27 anos depois, nasceria João Gomes de Oliveira Guimarães. O Oliveira que está no nome dos Guimarães do Espinhal não vem do pai, mas da mãe de Luís, Engrácia de Oliveira, que o recebera da sua progenitora, Ana Cecília de Oliveira Melo, natural de Coimbra. Quanto ao Abade de Tagilde, herdou-o do pai, Jacinto Gomes de Oliveira, que o levou de Pinheiro, também no concelho de Guimarães, quando casou em Mascotelos com a tia de Luís, Maria Alves de Abreu.

Em 1968, o coronel Mário Cardoso publicou na Revista de Guimarães, um artigo intitulado O Caricaturista vimaranense José de Meira (1887-1911), em que apresentava um manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, com um dístico em alemão gravado na capa: Was murret ihr? (o que estais a resmungar?), com caricaturas de José de Meira (assinava Meyra) legendadas em verso pelo seu irmão, o escritor e professor de medicina, João de Meira, filho de um dos fundadores da SMS, Joaquim José de Meira. Cada qual no seu género, ambos os irmãos se destacaram pela inteligência e pela fulgurante criatividade e por terem falecido tragicamente cedo. João de Meira estava destinado para ser o continuador do projecto monumental dos Vimaranis Monumenta Historica, concebidos para replicar, à escala de Guimarães, os Portugaliae Monumenta Historica de Herculano. Mas o destino não o quis.


O Abade de Tagilde, P.e João Gomes de Oliveira Guimarães, então presidente da Câmara Municipal, arqueólogo e diplomatista, coordenador do volume VIMARANIS MONUMENTA HISTORICA.
(Caricatura de José de Meira  e legenda de Mário Cardoso)


Não por acaso, atendendo à produção humorística do escritor do Espinhal e à sua afinidade familiar com um dos caricaturados, o Abade de Tagilde, Mário Cardoso enviou a Luís de Oliveira Guimarães uma separata da revista com o artigo, sobre o qual o conterrâneo de Santos Simões escreveu um texto, originalmente publicado no Comércio do Porto, que foi reproduzido no Notícias de Guimarãe  de 3 de Fevereiro de 1969.

Aqui fica:

 

Sobre o caricaturista vimaranense José de Meira

O Sr. Coronel Mário Cardoso quis ter a amabilidade de me enviar uma separata da Revista de Guimarães em que se ocupa do caricaturista vimaranense José de Meira, documentando o seu trabalha com a reprodução de algumas caricaturas feitas pela artista, entre elas a de um parente meu, o Padre João Gomes de Oliveira Guimarães, que foi abade de Tagilde, se dedicou à história e à arqueologia, e exerceu as funções de Presidente da Câmara Municipal de Guimarães por volta de 1905. É um portrait-charge flagrante. Não faltam sequer ao caricaturado dois pormenores que completavam a sua personalidade: um cigarrinho ao canto da boca e um guarda-chuva espetado na mão. Conta-se que o Abade de Tagilde costumava dizer que o seu guarda-chuva era tão bondoso, que o livrava das intempéries e o seu cigarro tão crente, que o fumo subia sempre para o Céu! Devo confessar que só muito vagamente conhecia a existência do caricaturista José de Meira. Sabia que tinha nascido em Guimarães um rapaz Meira com decidido jeito para a caricatura, mas ficava por aí. Este trabalho do Coronel Mário Cardoso veio elucidar-me acerca do caricaturista e da tua obra. Fiquei sabendo que ele nasceu em 1 de Novembro de 1887 e faleceu em 10 de Outubro de 1911; que era filho do distinto médico vimaranense Dr. Joaquim Meira; que era baixo, de ombros largos; que trajava como um dandy; que usava monóculo; que frequentara Medicina, em Coimbra, até ao 3.º ano; e que, dotado de singulares dotes de caricaturista, se comprazia em caricaturar Tout le monde et son paire, chegando a colaborar em duas publicações: na Nova Silva (1907) e na Farsa (1909-1910) As caricaturas que acompanham a separata documentam, não só as características, mas as qualidades do caricaturista. José de Meira morreu em 1911 com vinte e quatro anos. Ainda podia ser vivo e fazer caricaturas — à semelhança desse juvenil octogenário Manuel Monterroso que se bateu, de lápis em riste, até à última, contra as vulnerabilidades das pessoas e das coisas do seu tempo.

É fora de dúvida que, por força de várias circunstâncias, a arte da caricatura , entre nós, está em crise. Os caricaturistas cada vez são menos e os que ainda há dificilmente podem exercer a seu ofício, — até porque não existem, como existiam dantes, jornais de caricaturas. É certo que alguns jornais diários nos dão, por vezes, um ar da sua graça, mas é pouco. E, entretanto, a caricatura, como forma de crítica, é útil. Mais: é necessária. Nunca foi mesmo tão necessária para corrigir as costumes como hoje. Torna-se quase imprescindível fomentá-la. Estou com Celso Hermínio que afirmava, empunhando o seu lápis:

— Eu, se fosse presidente do Conselho, a primeira coisa que decretava era que o Diário do Governo publicasse, em todos os números, a caricatura oficial!

Luís de Oliveira Guimarães.

— in O Comércio do Porto.

Notícias de Guimarães, 3 de Fevereiro de 1969

Comentar

0 Comentários