Espinhal, 23 de Agosto de 1923, nasce J. Santos Simões

 


Há precisamente 100 anos, em dia de festa na Vila do Espinhal, concelho de Penela,  D. Albertina estava há horas em trabalho de parto e o sr. António, o pai da criança que teimava em não nascer, andava de um lado para o outro, não querendo perder a boa hora em que iria ser pai pela primeira vez, nem a procissão, que estava para sair. Naquele 12 de agosto de 1923, lá acabaria por nascer um rapaz, Joaquim António. Mais de quatro décadas depois, o homem que, pela sua obra, se tornaria um dos mais ilustres cidadãos de Guimarães, num terno e divertido livro de memórias sobre a sua terra natal, contaria as circunstâncias do seu nascimento ao som estridente dos foguetes e das marchas das filarmónicas:

 

O crepúsculo matinal prenunciava um dia radioso. A abóbada celeste começava a iluminar-se lá no cume da serra e prometia dia límpido e quente.

12 de Agosto de 1923. Não era data histórica. Apenas festiva.

As duas filarmónicas locais preparavam-se para fazer uma arruada, obviamente por trajectos diferentes, que as disputas eram sempre ao fim do dia, depois de satisfeitas as embocaduras por exigência do longo bufar nos instrumentos de sopro e da camaradagem dos restantes. À frente da Filarmónica União Lealdade Espinhalense, a Música Nova (alcunhada, sabe-se lá porquê, por cu aberto) seguia aprumado e sério o sr. Vasco Dias Simões de Almeida, seu fundador e regente da mesma até à sua extinção, e da Filarmónica Progresso Recreativo, a Música Velha (apodada de pau teso), o seu regente José Maria Seco Ferreira.

Na igreja matriz a azáfama era grande com os últimos retoques para a procissão do Santíssimo Sacramento, que iria sair à tarde.

Em minha casa, que era de aluguer, sita ao cimo da Rua Negra, bem próxima do solar do Castelo e quase o lado da do Senhor Firmino, não havia a mesma azáfama da Igreja, mas sim uma expectativa quase a explodir em alegria.

Minha mãe, uma jovem mãe, linda como todas as mães, mas diferente de muitas outras por ser um calmo lago de ternura, esperava nos seus 21 anos já feitos o nascimento do primeiro filho.

Mas os anúncios, que prenunciavam o nascimento, teimavam em eternizar-se e o meu pai, que não queria faltar à procissão, passeava agitado entre o corredor e o pequeno quintal.

Já a tarde ia a meio quando sobem ao ar os primeiros foguetes e começam a cantar os sinos, sinais indicadores de que a procissão ia sair.

Ou pelo barulho prenunciante do momento alto da festa, ou porque era grande a curiosidade do nascituro, o facto é que o nascimento ia consumar-se.

Assim, ao som estridente dos foguetes e das marchas das filarmónicas, lentas e bem marcadas, a senhora Luzia — lavadeira (no rio, pois claro), carrejona da água da fonte para casa, cozinheira, agora que minha mãe estava ocupada com outro afazer, e, também, parteira de ocasião, lançava-me no turbilhão barulhento da vida, entre os meus protestos bem gritados, os acordes musicais e o estourar violento das bombas dos foguetes que deflagravam a dois passos.

J. Santos Simões, Memórias — Vila do Espinhal, encruzilhada de caminhos sob o olhar de Coimbra, edição  da Junta de Freguesia da Vila do Espinhal, Guimarães, 2003, pp. 33-35

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