Guimarães, 13 de Dezembro de 2001. Tocar na imagem para ver o vídeo da reportagem da RTP. |
Naquela quinta-feira, 13 de Dezembro de 2001, a ansiedade tomou conta da Praça da Oliveira. Estava-se à espera da notícia que tardava em chegar. Quase em cima das quatro da tarde*, o telemóvel do presidente da Câmara tocou. Do outro lado, a uma distância de mais de três mil notícias, Francisca Abreu era a mensageira da boa nova, que António Magalhães logo partilhou com os que se lhe juntaram:
A partir de agora, Guimarães é património da humanidade. Muitos parabéns a todos, muitos parabéns a todos, muitos parabéns a todos.
Quando passam vinte anos sobre aquele momento único na história de uma cidade, partilho o texto que escrevi no mesmo dia, para uma edição especial do jornal O Povo de Guimarães.
* Hora em Portugal, mais duas em Helsínquia.
Celebrar o Património, com o olhar no futuro
De há alguns anos a
esta parte, Guimarães tornou-se num caso de estudo internacional. Um adjectivo
tem sido repetido vezes sem conta para classificar a intervenção urbanística no
Centro Histórico de Guimarães: exemplar. O esforço desenvolvido foi agora
consagrado com a integração do centro Histórico no roteiro da UNESCO dos sítios
classificados como património da humanidade. Pelo cabedal de prestígio
histórico e cultural de Guimarães, agora consolidado internacionalmente por um
organismo da Organização das Nações Unidas, e pelo seu indiscutível vínculo às
origens da nacionalidade portuguesa, esta terra tem o direito de assumir a
condição simbólica de capital histórica de Portugal.
O nascimento da
consciência patrimonial vimaranense remete-nos para o último quartel do século
XIX, com as intervenções dos homens que viriam a criar a Sociedade Martins
Sarmento. Data dessa época a primeira intervenção de restauro que encontrámos
documentada em Guimarães: as obras de recuperação da igreja de S. Miguel do
Castelo, dirigidas por Martins Sarmento, que seriam objecto de reconhecimento
nacional. Ao longo do tempo, os modelos a que obedeceram os restauros de
património sempre estiveram sujeitos a modas, algumas das quais responsáveis
por soluções que hoje se consideram lastimáveis, de que são exemplo as
intervenções no miolo urbano de Guimarães e na colina do Castelo quando, em
meados do século XX, se procedeu à abertura de grandes espaços, através da
demolição do velho casario: com entulho das casas arrasadas, foi sepultada uma
boa parte da memória da cidade. Nas intervenções agora distinguidas, também não
foi seguido o modelo adoptado, em tempos mais recentes, com a construção da
Pousada de Santa Maria da Oliveira, de que resultou um edifício fingido,
moderno mas a imitar a traça do casario do velho burgo.
A requalificação urbana do
Centro Histórico de Guimarães conduziu à recuperação do património degradado,
preservando as marcas do tempo e harmonizando o novo com o velho. Nunca houve a
ilusão de se estar perante uma tentativa de recriação da feição urbana
vimaranense dos finais da Idade Média, onde necessariamente haveriam de
ressurgir as casas cobertas de colmo, expostas às agruras das intempéries, e
ruas e vielas pestilentas, muitas vezes transformadas em chiqueiros por onde
cirandavam cães, galinhas e porcos, num tempo em que não existia abastecimento
público de água potável nem sistema de saneamento, onde os despejos de
imundícies domésticas eram feitos directamente para a via pública, com recurso
ao ritual matinal da água vai. Uma cidade onde hoje ninguém quereria
viver.
Em boa verdade,
aquilo que em Guimarães tem sido feito é muito mais do que uma operação de
restauro: em muitas das intervenções, procedeu-se à construção de património
novo, com respeito pelas rugas que o tempo tem acentuado nas velhas casas, sem
se cair em propensões museológicas. Nas últimas décadas, as intervenções no
Centro Histórico, coordenadas pelo GTL, obedeceram a conceitos diferentes e
inovadores. O que se construiu de novo, surgiu com a intenção de preservar e
valorizar o antigo. Os arranjos das velhas praças encontraram soluções que
contribuíram para cimentar a ideia de unidade orgânica da estrutura urbana do
velho burgo vimaranense, permitindo que o centro cívico da cidade fosse
regressando para a velha Praça Maior e para a Praça de S. Tiago. Entretanto, as
casas continuaram habitadas pelos seus moradores de sempre, e Guimarães não
padeceu de um dos problemas que têm conduzido à agonia muitas das cidades
contemporâneas: a desertificação dos centros.
Cada uma das pedras da velha
vila de Guimarães é um repositório da memória da gente que por aqui passaram no
transcurso do tempo. As casas, as praças, as ruas, as vielas ocultam as
histórias de vida dos homens e das mulheres que as povoaram, e que, de geração
em geração, foram erigindo o património que nós recebemos como herança: os
edifícios, a estrutura urbana, mas também a história, as tradições, a
gastronomia, (desde o pão até ao vinho, passando pelos doces manjares das
freiras de Santa Clara), o artesanato, as festas populares, as manifestações da
religiosidade.
Em tempos onde conceitos como globalização,
mundialização e massificação cultural estão cada vez mais presentes no
quotidiano, e onde é manifesta a tendência para o esmagamento dos traços de
identidade locais e regionais, é ainda possível encontrar na cultura ancestral
vimaranense respostas que poderão conduzir a soluções inovadoras, capazes de
mobilizarem as gentes da terra, além de gerarem novas oportunidades de emprego
e de se constituírem em factores de atracção turística. Para tal será
necessário fazer, ao nível da cultura imaterial, algo de semelhante ao que se
fez na recuperação arquitectónica do centro histórico (embora com custos económicos
infinitamente menores): evitar que a erosão dos tempos continue a exercer o seu
efeito de desgaste sobre a cultura tradicional, recuperando o que houver
interesse em recuperar e introduzindo as adaptações que os tempos que correm
justificarem. Festividades como as Nicolinas, a Santa Luzia das passarinhas
e dos sardões, o Carnaval, os Santos Populares, com algum esforço de
investigação histórica e etnográfica e o correspondente investimento
organizativo e promocional, podem tornar-se em momentos em que a cidade, para
lá do tempo das Gualterianas, salvaguarde a sua matriz cultural e se afirme
como pólo de atracção de fluxos turísticos.
Não conheço nenhuma outra terra cujas
gentes tenham uma relação tão especial com a sua história, que aqui é
frequentemente motivo de paixões arrebatadas. Um dos reptos lançados pela nova
condição de Guimarães constitui um chamamento para o investimento no estudo e
divulgação, especialmente entre as gerações mais novas, das nossas raízes
históricas e culturais. Já não nos deve bastar que a cidade viva à sombra das
suas glórias passadas, da sua história. Guimarães tem hoje espaço e massa
crítica para o lançamento de projectos de investigação inovadores em áreas como
a História e a Antropologia, que contribuam para a valorização do património
colectivo e para que se dê alimento ao crescente do interesse pelo conhecimento
da realidade vimaranense, potenciado pela classificação da UNESCO. Olhando para
o futuro, impõe-se assegurar que as nossas gentes não deixem quebrar os laços com
a herança do seu passado.
Com o novo estatuto
mundial, faz-se agora notar com maior nitidez a ausência de um Museu de
História da Cidade em Guimarães. Ao contrário do projecto de criação do museu
dedicado a D. Afonso Henriques, que cada vez mais se constitui como uma utopia,
este Museu tem asseguradas as condições de exequibilidade. Antes de mais,
porque não há falta de espólio e porque não exige grande investimento material.
Há alguns anos, a Sociedade Martins Sarmento sugeriu à Câmara Municipal a sua
instalação no Largo da Oliveira, na antiga casa da Câmara, dando conta da sua
disponibilidade para a cedência do acervo relacionado com a história de
Guimarães que tem à sua guarda. Tal Museu poderia funcionar como um centro
explicativo da cidade património mundial. A passagem dos cento e cinquenta anos
sobre a data da elevação de Guimarães a cidade (em 2003) seria um excelente
momento para a concretização de um tal projecto.
O título de
Património Cultural da Humanidade constitui um justo reconhecimento de um
trabalho de recuperação e conservação modelar, que honra Guimarães e as suas
gentes, e em particular os responsáveis técnicos e políticos que ao longo de
mais de uma década deram corpo a uma ideia que alguns, demasiado cedo,
classificaram quase como um devaneio delirante. Os obreiros deste triunfo já
têm lugar reservado nos anais da história vimaranense. A hora é de júbilo e
celebração, mas sempre com a consciência de que tamanha honra constitui um
importante compromisso para o futuro, propiciando a concretização de novos
projectos e a resposta a novos desafios.
[Texto originalmente publicado no jornal O Povo de Guimarães, de 21 de Dezembro de 2001]
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