“Santa Rita me dê uma pita, São Gonçalo me dê um galo”

 

Há, na tradição popular, a crença em certas forças negativas que se esforçam por perturbar a acção da natureza, prejudicando os frutos que os homens esperam vir a colher do seu trabalho: a Lua, o demónio, as “almas”. Para as neutralizar, socorrem-se os camponeses de práticas que visam interceder junto das potências protectoras pelo êxito das sementeiras, das fornadas de pão, das ninhadas: os ritos propiciatórios. Sempre que preparam qualquer tarefa agrária, os homens observam a Lua para ver se ela está de feição e, em seguida, procedem a diversos rituais, mais ou menos elaboradas, das quais se conhecem inúmeras variantes, mesmo no interior de um espaço geográfico único.

Assim procede a lavradeira minhota sempre que se prepara para pôr uma galinha no choco. Em primeiro lugar, escolhe o dia indicado para o efeito, uma vez que não se podem pôr ovos a chocar nos dias da semana tidos por aziagos, a terça e a sexta-feira, sob pena de se perdera ninhada. Na noite da véspera do dia escolhido, deverá perscrutar o céu para ver se a Lua se encontra na fase mais propícia do seu ciclo: a Lua Velha.

Em Vizela, os ovos são postos na Lua Crescente e em dia de calor, enquanto que em Travassos se afirma que os ovos postos a incubar com a Lua Nova dão muitas frangas, ao passo que os da Lua Velha darão mais frangos. Por outro lado, os ovos que tenham sido postos pelas galinhas em tempo de mudança de Lua são estéreis. É importante a escolha dos ovos que serão utilizados para chocar: devem ser completamente lisos (os que apresentam rugosidades na parte superior não servem) e totalmente cheios. Caso contrário, os pintos poderão nascer com aleijões.

Sempre que a dona da galinha não tenha ovos para por a chocar e haja que os ir buscar fora, devem tomar-se algumas precauções. Em primeiro lugar, a pessoa que os vender deverá polvilhá-los com sal e migalhas de pão, “para dar sorte”. Depois, quando os ovos são transportados para a casa onde serão chocados, deverá evitar-se passar com eles por cima de um ribeiro: se assim se não fizer, a ninhada não vingará.

Os ovos são colocados num ninho cuidadosamente preparado num cesto de palha, sendo a hora do meio dia a melhor altura para o fazer, uma vez que o Sol está então no máximo da sua potência. Algumas mulheres chamam, para esta operação, alguém que tenha fama de ter sorte com as ninhadas: na maioria dos casos, são os homens que o fazem. Ao dar início à deposição dos ovos no ninho, reza-se um Padre Nosso ou uma Salve Rainha; os ovos serão colocados em pernão, isto é, em número ímpar (por vezes, são colocados três a três). Finda esta operação, espalha-se sal grosso e migalhas de pão cozido em casa à volta dos ovos. Em Garfe, havia também o costume de se oferecer uma esmola aos santos para que houvesse sorte com as ninhadas.

Para invocar a intervenção das forças benéficas (os santos que podiam interceder pelo sucesso das ninhadas de pintos), proferiam-se ainda determinadas fórmulas, compostas por palavras que se pronunciam com uma cadência e uma entoação apropriadas, e que geralmente rimavam com o nome da pessoa sagrada a que se recorria. Este uso tem a ver com a eficácia e a força que os camponeses atribuem, às palavras das suas rezas. Nesta altura, para além de que os ovos vinguem, a principal preocupação é a de que, na ninhada que se irá gerar, haja muitas poedeiras, uma vez que os ovos têm um valor económico significativo.

O santo invocado tem pouco a ver com as suas virtudes em relação à procriação dos animais domésticos — cujo orago, o Santo António, é pouco citado nestas situações — e mais com a coincidência do seu nome rimar com as palavras que se proferiam. O exemplo mais corrente é este:

Em louvor de São Salvador

Muitas pitas e um só galador.

Um pouco por todo o lado, encontram-se diversas variantes desta reza. Em Brunhais, diz-se: Em louvor de São salvador, me saia só um galador, enquanto que em Pevidém se costuma dizer Por honra de São Salvador, tudo pitinhas e um só galador, versão que é enriquecida em Ferreiros, Póvoa de Lanhoso, onde se diz Lanço esta ninhada em nome de São Salvador, tudo pitinhas, só um engalador. Se em Lustosa o galo volta a ser designado por galador, o santo que se invoque e que com ele rima continua a ser o mesmo: Seja louvor de São Salvador, tudo galinhas e um só galador.

Em S. Paio de Vizela invoca-se, para o mesmo fim, o S. Gonçalo, que terá nascido para aqueles lados: Em louvor de S. Gonçalo, seja tudo pitas e um só galo. Já em Garfe, depois de se fazer o sinal da cruz, pronuncia-se esta fórmula: Por S. Gonçalo, saia um galo, por Santa Marinha, saia uma galinha. Na freguesia lanhosense de Esperança, recorre-se à Santa Rita, pronunciando-se, de cada vez que se põe um ovo no ninho: Santa Rita me dê uma pita e, ao último ovo: tudo pitas e só um galador. Em Fafe é o patrono dos animais domésticos, Santo António, o escolhido: Meu Santo Antoninho, saia tudo franguinhas e um só franguinho.

Estas operações terminavam quase sempre com benzeduras (em Travassos, aquele que colocava os ovos no choco benzia-se no fim, com um ovo na mão). Para que as galinhas tivessem força para poderem suportar todo o período da incubação, havia quem lhes desse a comer sopas de pão com vinho e açúcar, as famosas Sopas de burro cansado. Passadas três semanas (o tempo de espera até que aconteça a eclosão dos pintos), existe em alguns lugares o costume de se aspergirem os ovos com vinho, a fim de dar aos pintos energias suficientes para romperem as cascas.

[Texto publicado originalmente no n.º 2 do jornal Impulso, de Agosto de 1988. Desenho de Salgado Almeida]


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