A pandemia à luz da história

 

Peter Bruegel, o Velho, O Triunfo da Morte, C. 1562, Museu do Prado, Madrid.

Em 1649, quando uma virulenta epidemia de peste bubónica grassava no Algarve, o Padre António Vieira disse um Sermão a S. Roque, protector contra as pestes, usando de palavras que, no essencial, poderiam descrever os tempos estranhos que temos vivido:

Os portos, e as barras fechadas, e os navegantes alongando-se ao mar, e não só fugindo da costa, mas ainda dos ventos dela; os caminhos por terra tomados com severíssimas guardas; o comércio, e a comunicação humana totalmente impedida; as ruas desertas, e cobertas de erva, e mato, como nos contavam e viram nossos maiores nesta mesma cidade de Lisboa; as portas trancadas com travessas, e almagradas [marcadas a vermelho]; as sepulturas sempre abertas, não já nas igrejas nem nos adros, senão nos campos, e talvez caindo nessas sepulturas mortos, os mesmos vivos que levam a enterrar os outros defuntos; […] os irmãos fugindo dos irmãos, os pais fugindo dos filhos, os maridos fugindo das mulheres, e todos querendo fugir de si mesmos, mas não podendo, porque a saída é indispensavelmente vedada e impossível.

Padre António Vieira, Sermões hagiográficos, Tomo II, Obra Completa, Vol. XI, Círculo de Leitores, 2014, pp. 392-393.

As epidemias são tão antigas como a humanidade. Os historiadores e os demógrafos descreveram-nas como processos naturais de regulação do crescimento da população, antecipando a inevitabilidade da sua ocorrência cíclica. Pela leitura do texto do Padre Vieira, percebe-se que, no passado, as medidas de prevenção das epidemias pouco diferiam das de hoje: confinamento, encerramento do comércio, limitações à circulação, distanciamento físico, isolamentos, quarentenas.

Na história de Guimarães não faltam memórias de epidemias. A singular procissão do Espírito Santo, da Candeia, do Rolo ou das Marafonas teve a sua origem na pandemia de tifo de 1489. A capela de S. Roque, foi erguida na encosta da Penha na sequência de uma peste que grassou entre 1507 e 1509. O terreno que envolve a capela serviria de cemitério às vítimas de sucessivas epidemias. A mais catastrófica de que ficou memória em Guimarães aconteceu em 1599, depois conhecido como o ano da peste. Com a vila tomada pela doença e pelo medo, a população fugiu para fora de portas, estabelecendo uma Casa de Saúde na Costa.

Peste era o nome que se dava a todas as epidemias, independentemente da sua natureza. Por se acreditar que o contágio se transmitia pelo ar, preveniam-se com fogueiras nocturnas em que ardiam pinhas, alecrim e outras plantas odoríficas. Após a peste de 1509, antes do regresso dos moradores, as ruas foram percorridas pelo gado das cercanias, já que se atribuíam virtudes purificadoras ao seu bafo. Estas práticas apenas serviriam para apaziguar os espíritos assutados, já que tinham pouco préstimo na prevenção das doenças contagiosas mais mortíferas, como a peste bubónica, o tifo ou a cólera, que tinham origem em bactérias transmitidas por pulgas, piolhos, água ou alimentos contaminados.

No passado, as epidemias eram devastadoras. Na freguesia de S. Sebastião, a partir de uma lista elaborada pelo respectivo pároco, a historiadora Norberta Amorim contou 338 pessoas falecidas durante a peste de 1599, o que corresponde a cerca de 30% dos moradores. Se hoje uma epidemia tivesse uma incidência semelhante, numa população com a dimensão actual da de Guimarães, ocorreriam bem mais de 40.000 óbitos.

Apesar do discurso negacionista que se alimenta da ignorância, é sabido que o vírus que agora nos atormenta é muito perigoso e potencialmente tão mortífero como os que dizimaram as populações do passado. No entanto, até hoje faleceram 283 vimaranenses vítimas de covid-19 — menos de 0,02% dos habitantes do concelho. Os historiadores do futuro dirão que, apesar do medo, da ansiedade e da dor irreparável dos que por estes dias choraram as suas perdas, tivemos a sorte de viver num tempo com cuidados de saúde universais e eficazes.

O tempo em que o conhecimento científico deu passos de gigante, que permitiram algo até agora nunca visto: o desenvolvimento, em tempo real, de vacinas contra um vírus cuja existência se desconhecia há pouco mais de um ano. E este é um facto histórico.

[Crónica originalmente publicada no n.º 2 do Jornal de Guimarães em Revista, Maio de 2021]

Comentar

0 Comentários