Sinfonia em verde, por Santos Simões

J. Santos Simões
Em 1950, o poeta Miguel Torga publicou o seu Portugal, o roteiro de uma viagem por este país, que começava por terras de Guimarães e pelo Minho, a que chamou de “pesadelo verde”, sedativo e bovino. No seu caminhar para Guimarães, “com antolhos de parra a impedirem o aceno de qualquer horizonte”, ruminava, refilava contra o manto verde que cobria a paisagem. A passagem pela Citânia de Briteiros, erguida “nas alturas agrestes do mundo”, aplacou-lhe o tédio de que o dominava ao atravessar aquele estendal de paisagem verdejante. Por breve tempo.
Infelizmente, logo a seguir, os aquistas das Taipas lembravam anjos a veranear numa nuvem de clorofila... Parecia uma alucinação. E comecei a parodiar-me:
 – O vinho é verde, o caldo é verde...
Anos mais tarde, os resmungos rudes e enfastiados com tanto verde de Torga, ao chegar a Guimarães, serão evocados por Santos Simões – que admirava o poeta Miguel Torga, mas que não nutria particular simpatia pela personalidade do seu alter ego, o médico Adolfo Rocha – num texto poético em que descreve as variações dos tons de verde que vão pintando, ao longo do ano, a paisagem que espreitava da sua janela, em serena sinfonia-em-verde e que alcança a sua plenitude quando chega “o Outono, não o Outono enfermiço dos poetas mortos, mas o Outono vivo”. Porque, diz-nos, “o Minho só o é no Outono, com cheiro a vinho novo, milho nas eiras, homens lançados sobre o seu pão e o seu vinho, porque das suas mãos calosas nasceram”.
Este texto, publicado no Notícias de Guimarães quando terminava o Outono de 1962, vale a pena ser lido. Aqui fica.

Então, a latada é o Minho!
Agora que a Penha se ergue lá para o meio-dia — quando ergue! — sacudindo em farrapos o manto cinzento que a envolve, e entristece a cidade, já ninguém fala — nem o poeta —do verde sedativo e bovino, enchendo a quebrada de Guimarães.
Este tempo mole e reconfortante na sua passiva monotonia, nasce com a Primavera e desdobra-se em milhões de verdes, cobrindo a natureza, numa escala tão rica, que só os olhos dos sem olhos não conseguem descortinar.
Cotovelos fincados no parapeito da janela, que se debruça sobre a latada, parece que se vêem sair dos nós os botões e as gavinhas, dum verde envergonhado, que dia após dia enrijam era força e cor, para dar folhas e fixar ao arame a planta, que não tarda a anunciar os frutos.
É afinal toda a natureza eufórica que agradece em serena sinfonia-em-verde o trabalho dos que prepararam terra e plantas para um novo ano de vinho e de pão.
Os frutos!
Esta é a mais deliciosa das conquistas, que o olhar atento teima em realizar. É que os verdes de todos os tons, incluindo os inimagináveis, parecem aguarelas, que as chuvas de Maio tentam reduzir a um único tom. Mas é apenas quando o Junho quente transforma em braseiro a cidade (sonhando, mergulhada no frenesim do trabalho, com a frescura da Penha) que o verde é um só, único, denso, cansativo, talvez melancólico pela melancolia que gera, mas avaro, na guarda que faz aos frutos, que se perdem sob a sua espessa uniformidade.
Se não fossem os homens com o seu incansável pendor para criar beleza, e decisão para salvar de certos bichos-de-Deus os frutos que hão-de dar o verde, creio que mandaria tomar foscos até ao Outono os vidros daquela minha janela debruçada sobre a latada.
Mas não. O verde cúprico sobre o verde clorofílico, dá vida à natureza espapaçada, fende o mar (que não é de esmeralda) e dá novo alento à paisagem.
Não esqueço aquela roupa interior que fere o maciço de verdura, riscando-o desuniformemente (pijamas, meias, combinações, etc.). É uma agressão praticado contra a natureza. Tem qualquer coisa de extravagante. Lembro-me agora de uma preta que vi na Guiné com os seios enclausurados num soutien branco, enquanto um numerou grupo de mulheres que a acompanhava, se apresentava, naturalmente, de torso nu.
Mas também cansa, ver o verde natural, repetidas vezes pintado de verde-sulfato! Depressa aborreço a cor quer me quebrou o cansaço, matando simultaneamente os tais-bichos-de-Deus...
Fujo de Guimarães.
Deixo atrás de mim a Penha, com os seus penhascos ameaçadores, coroando o verde mais escuro das cristas dos pinheiros...
O Verão passa.
Quando regresso, sei que as uvas já foram esmagadas, porque cheira a vinho verde, docinho!
O limitado rectângulo da janela, que se debruça sobre a latada, reduz a paisagem a um postal ilustrado. Não serve.
Quero ama varanda larga com a dimensão do horizonte, varanda de onde possa abarcar esse mundo de cor, esse mundo garrido, único, espantoso!
O Minho não é Minho na Primavera. O Minho só o é no Outono, com cheiro a vinho novo, milho nas eiras, homens lançados sobre o seu pão e o seu vinho, porque das suas mãos calosas nasceram.
O Minho só é na sinfonia cromático do A a Z. Do branco quase branco, mas ainda não branco das suas parras; do vermelho, lilás negro das suas parras, só negro nas meias tintas do anoitecer.
E é a latada que se desdobra em mil tons e mil cores. O sol quebradiço do Outono grita no vermelho vivo das folhas mais expostas. O sulfato, desmaiado pelas primeiras chuvas, não deixa que o sol tinja as folhas que o homem já pintou. E acontece que o vermelho dos cimos da latada dá lugar a um doirado metálico que o entardecer acentua. E o sulfato transforma-se num escorrer verdoso de oxidação, que confunde perante a vista, dois reinos da natureza.
Este verdete é o sinal de timbales, que lança a sinfonia nos últimos acordes.
Daqui em diante, só resta às folhas um tom sujo, usado; mesmo tenuamente agarradas no caule, parecem rodopiar, como nos passeios das avenidas, quando as chuvas e os ventos vizinhos do Inverno oficializam o seu apodrecimento.
Mas elas teimam— como certas velhas ridículas — em manter-se agarradas ao caule, por onde correu a seiva da sua juventude.
E 0 vento, numa ira perfeitamente natural, chicoteia-as, arrasta-as para os valados e depressões, onde apodrecem misturando-se com a terra, gerando húmus que há-de reverdecer, reflorir a latada.
E quando chegar o Outono, não o Outono enfermiço dos poetas mortos, mas o Outono vivo, em todo o seu cromatismo, que é moldura dos homens e da natureza, então, sim, a latada é o Minho.
Guimarães, Outono de 1963.
SANTOS SIMÕES.
Notícias de Guimarães, 22 de Dezembro de 1963



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