Francisco Jácome. Retrato a óleo de Abel Cardoso, 1910, da colecção da Sociedade Martins Sarmento, |
Em
Janeiro de 1964, Alberto Vieira Braga publicou no Notícias
de Guimarães um belo texto em que recorda uma tertúlia que, nas
primeiras décadas do século XX tinha o seu ponto de encontro na
relojoaria de Francisco Jácome, na rua de Paio Galvão, em
Guimarães. Os que a frequentavam, nas palavras de Vieira Braga,
formavam uma plêiade de homens ilustres e
respeitosos, lídimos espíritos que pontificavam no
magistério, na indústria, no ensino e no sacerdócio
(....) nobremente servidos de talento, de
qualidades morais e de recursos
monetários.
Pelo
texto passa uma galeria de vimaranenses ilustres, descritos de
memória por Alberto Vieira Braga, que os conheceu quando era jovem
(o futuro etnógrafo e historiador tinha 24 anos quando a tertúlia
do Jácome se desfez, por morte do seu anfitrião, em Abril de 1916),
a começar pelo próprio Francisco Jácome, uma figura singular e
algo extravagante, mestre na arte da relojoaria, entusiasta da
matemática e inventor de uma engenhoca que assarapantava os
meios-dias dos seus vizinhos, passando por Joaquim
José
Meira, Abade
de
Tagilde,
Domingos
Leite de
Castro, o Cónego Moreira, o Cónego
Vasconcelos,
Barbosa
de
Oliveira,
Augusto José Domingues
de Araújo, o
Padre João Cândido,
Eduardo Manuel de
Almeida, o Conde
de
Margaride e
o Barão
de
Pombeiro,
os Drs. Avelino
Germano
e
Formiga e o pintor Abel
Cardoso.
Na
altura em que escrevia, apenas
um dos ilustres vimaranenses que frequentavam a tertúlia do Jácome
“atingiu idade macróbia” e ainda estava vivo quando Alberto Vieira
Braga escreveu este texto, um dos últimos que publicou, já que
viria a falecer no início do ano seguinte.
Uma
tertúlia erudita de há cinquenta anos
Segundo
testemunho abonatório e
elogioso de Camilo Castelo
Branco,
o
maior romancista
português, amigo
íntimo
de Martins
Sarmento e
hóspede
de permanências
errantes
e
furtivas do Hotel
da
Joaninha, que andava
sempre em
bolandas
fugidiças quando
se via perseguido
pelas
justiças
que o
assaltavam
pelo
seu crime de
adultério, e atormentado pela angustiosa
morbidez
dos
seus
achaques
e
desgostos familiares, segundo testemunho desse homem esgouviado,
picado do génio e das bexigas. “Guimarães era uma
faustosa
cidade
que
teve academia
de sábios”(1)
e
também “viveiro
das mais
lindas
mulheres
que um viajante
francês encontrara na Península”.
Foros
de terra privilegiada e florescente no arroteio mimoso e distinto das
letras e das artes, sempre teve, pelo derrame dilatado das suas
arcádias que viviam adentro da Colegiada de Guimarães em constantes
actividades laudatórias, bombásticas, poéticas e literárias.
Qualquer
arroubo patriótico, aniversário pomposo e real ou data festiva e
principesca, era pretexto esperançoso e vigoroso para se formar
logo, em bandada escolástica, uma academia de papagueadores
entendidos na arte de versejar, que glosavam dias e dias, em sessões
literárias, os temas mais diversos e mais variados, dentro duma
liberdade afectiva, bimbalhante e por vezes humorística e picaresca.
Eram
umas academias que tinham o valimento temporário dos colóquios
abundosos e por vezes atropelantes dos nossos dias.
A
mais, havia ainda o valor intrínseco de umas tantas e afamadas
tertúlias de passatempo, esporádicas, heterogéneas de criação
livre e voluntária, domiciliárias, de porta aberta, rés-do-chão,
em algumas das quais se elevava o espírito em conversas de paixão
literária ou de refrigério anedótico e mordente.
Noutras
se entretinham os afeiçoados amigos, das tantas às tantas, nas
noites nevoentas e negras das províncias, no jogo adestrado do
gamão, das damas, do xadrez, do dominó, da sueca, do solo e do
loto.
Estas
tertúlias, que juntavam socialmente as pessoas e eram um indício de
boa cultura e de certa afabilidade no trato da convivência,
desapareceram totalmente nos tempos de hoje, pelo incremento amplo o
radicado que tomaram os clubes desportivos, os grupos rotários, as
sociedades culturais e recreativas, os ateneus, os convívios
literários, etc., diversidade agremiativa que vai promovendo as suas
conferências, as suas exposições, realizando as suas excursões de
estudo e organizando os seus programas cénicos, poéticos e
musicais,
É
uma nova onda em movimento acelerado de cultura progressiva e
científica.
As
tertúlias tinham, no geral, um carácter modesto de passatempo, o ar
duma pasmaceira larga, onde se reuniam e agrupavam amigos e
conhecidos, no âmbito duma casa ou dum estabelecimento.
Joaquim José de Meira. Retrato a óleo de Abel Cardoso, 1931, da colecção da Sociedade Martins Sarmento, |
Eram
uns
centros
de vida intelectual, núcleos calorosos duma sociabilidade local,
onde
animadamente comunicavam, de preferência, os valores apegados
aos sentimentos
bairristas,
tradicionais, e aos prazeres
de um ameno cavaco, que a inteligência servia, criando
o gosto da polémica, da destreza e do florilégio verbal. Uma
vez
fixadas,
perduravam, estabelecendo o baptismo
de novas
ligações humanas, afoutando lembranças, predilecções
regionalistas
o estimulando os movimentos
de conjunto e a
organização de obras benemerentes
e de utilidade pública, no campo social,
administrativo e político. Muitas
eram simples
redondel de
chalaças e de má
língua.
É
curioso
indicar, em semelhança,
as
remotas origens destas assembleias
urbanas,
prometedoras e renovadas com os
antigos
conciliábulos
e adjuntos rurais que desde séculos, nas paróquias
e nos adros
se
reuniam, para discutirem
os seus problemas
e negócios, a teoria dos seus
usos, costumes e tradições, ou ainda com os familiares serões, nos
recantos
da lareira, noites
invernosas levadas
a fio, narrando as
velhas
histórias
dos cancioneiros e das mouras
encantadas.
Trazem
de muito longe, como se vê, as veias emaranhadas das suas raízes de
origem, as festejadas tertúlias das épocas passadas
Tinham
as tertúlias, os ajuntórios ou adjuntos e os serões, a mesma
génese de tradição e de permeabilidade, os mesmos rumos
expressivos e sociáveis, que se entrelaçaram no espírito e na
convivência das gentes, e exaltavam à fascinação e ao encanto do
devaneio, da narrativa, das amizades, dos negócios e dos problemas
familiares e comuns.
Há
cinquenta anos (o raio do tempo agora, esgueira-se tão
desarvoradamente, que nos leva num estantinho para a beira da última
paragem), há cinquenta anos, ali na rua de Paio Galvão, havia uma
afamada tertúlia onde se reunia, ao lusco-fusco, em amena cavaqueira
política e anedótica com entremeios literários e científicos, uma
plêiade de homens ilustres e respeitosos, lídimos espíritos que
pontificavam no magistério, na indústria, no ensino e no
sacerdócio.
O
ponto aprazível destas reuniões dos grande eleitos, nobremente
servidos de talento, de qualidades morais e de recursos monetários,
quedou longos anos na loja de Francisco Jácome. Este Jácome era um
homem modesto, de bigodeira hirsuta e grisalha, rosto sobranceiro e
tostado, olhos papudos e perscrutadores, que amostravam, como em
espelho, o coruscar da sua inteligência. Era ainda e mais, um lábio
na técnica da relojoaria e tão habilidoso para a mecânica como
talentoso para a ciência das matemáticas puras.
Despretensioso,
nunca tirava o barrete e o solipó, e assim recebia os fregueses, os
amigos e os conselheiros da cavaqueira nocturna.
Com
cata indumentária, junto à banca do ofício, foi retratado, em
1900, pelo seu íntimo amigo Abel Cardoso, que também frequentava as
assembleias patriarcais do seu estabelecimento(2).
João Gomes de Oliveira Guimarães, Abade de Tagilde. Retrato a óleo de Abel Cardoso, 1952, da colecção da Sociedade Martins Sarmento, |
Nas
derivantes, este artista pintor, Francisco Martins, Américo Ângelo,
exímio pianista, José Luís de Pina, Dr. Eduardo e outros, dos mais
íntimos, solteirões e boémios, amesendavam muitas vezes, em
espevito de gula, numas patuscadas suculentas e espumantes do rosa
fumeguiço, servidas numa saleta da sua habitação ou no recantinho
discreto do quintal das suas casas do Campo da Feira.
Tão
habilidoso como arguto, este homem singelo, de aspecto vulgar, terra
a terra, que passava despercebido aos olhos dos vesgos e dos
desatentos, quando apresentava qualquer problema matemático à
resolução dos sábios entendidos na matéria, punha-lhes a cabeça
em água, deixando-os em suspenso ante os seus instantâneos
ardilosos.
Um
dia engendrou uma meridiana, instalou-a nas traseiras do prédio, lá
para os altos do telhado, colocava um explosivo na incidência dumas
lentes fortes, e quando o sal atingia o zénite, era sabido, todos os
vizinhos, toda a rua, ao bater dos meios dias, tinham de ouvir aquele
estampido seco, como de um tiro de arcabuz.
Era
certinho. Ao meio dia em ponto, zás, escachoava o explosivo.
Tão
mágico e dado às ideias e mecânicas esquisitas que até parecia,
murmurava o povo, que este relojoeiro tinha geringonça com o
mafarrico.
Pelo
S. João, as suas cascatas, armavam em fonte luminosa, as figuras em
movimentos, fazendo cair um brilhante luar em todos os carreirinhos
que levam para as fontes, para as castelos, vira os palácios e para
os moinhos.
Com
lentes, espelhos e vidros de cores, pintava o diabo.
As
cascatas de Francisco Jácome, eram um divertimento familiar, digno
de ver-se, pela maravilha e combinação de luzes e de cores.
Quando
apareciam no seu estabelecimento os lavradores, que então usavam uns
cebolórios que só tinham de bom as caixas, e lhe perguntavam:
— Sr.
Jáco, este relógio merecerá compostura?
respondia
rudemente, desenganadamente:
— Se
o miolo resistir a três marteladas, vale; se não resistir, mande
fundir as tampas e faça uns alamares de prata para a sua jaqueta.
— Marteladas
na fábrica? Livra! Dê-as o senhor na cabeça. O diabo do homem não
está bom...
Pois
era assim mesmo, sem tirar nem pôr, o patriarcal proprietário desta
arcádica tertúlia de gente grave. Todos os componentes do cenáculo
se distraíam e animavam na azafama da conversa, sem atentarem nas
virtudes e defeitos de cada um, afluindo àquele afreguesado centro,
pelo espírito e não com propositados fins de obter e encanar mútuas
conversões ou catequizações no campo político ou religioso.
Não
era gente disso. Havia lisura de atenções e de princípios.
Todos
se davam bem, na elevação, nos respeitos, nos reencontros da cultura
e na diplomática intelectualidade dos puros discernimentos.
A
selecção dos valores encontrava-se ali em pacífica e respeitadora
camaradagem.
Era
uma sociabilidade acima do vulgar, de íntimo e afagoso acolhimento,
com riquezas de ganho proveitoso pela variação das conversas e dos
assuntos. O rodopio lampeiro do pensamento, desfraldava-se por largos
horizontes, marcava vários estilos, vários lemas, diversas
direcções e singularidades dentro das escalas preferidas da
conversa dos calores discursivos.
Havia
de tudo. Transparentes e reservados. Uns mala realistas e filósofos
do que outros, mas todos de qualidade natural e humana, compreensivos
e honestos.
Domingos Leite de Castro. Retrato a óleo de Abel Cardoso, 1916, da colecção da Sociedade Martins Sarmento, |
Encontravam-se
ali naquela boceta
de ambiente aprazível, simultaneamente,
o Dr.
Joaquim José
Meira,
homem reflectivo
e sagaz, duma preponderância qualificada; o Abade
de
Tagilde,
espírito
luminoso, notável de
erudição e investigador escrupuloso, paciente,
da historiografia local; o Domingos
Leite de
Castro,
criatura de ideias muito originais
sobre
os antigos
passos
da
nossa pré-história, escritor inteligente, maneiras
fidalgas e
conversador
atraente; o Cónego
Moreira,
carinhosamente enternecedor
nas
opiniões e
na
moralidade; o Cónego
Vasconcelos,
mais azougado e afoito, sempre
de sorriso
aberto e loquaz no comunicar
das utilidades que se
aspiram e dão gosto
à vida; o Barbosa
de
Oliveira,
dicionário enciclopédico, óculos acavalados
na ponta do nariz,
muito esperto e falador, que lia
nos
astros o movimento das ursas e das
estrelas
mais tacnhas
e macróbias, com aquela certeza do bê-a-bá fugiu a burra; o Dr.
Augusto José Domingues
de Araújo,
médico militar, homem sobre o meão,
de certa independência
no proferir das suas
opiniões, lunetas
de fio pendente, amarrado a uma botoeira do colete, ágil e finório
como um
gaio; o Padre
João Cândido,
pároco de Vila Nova de Sande,
amigo íntimo
do Abade de Tagilde,
escritor e conversador admirável: o Eduardo
Manuel de
Almeida,
carácter impoluto, superiormente inteligente, com profundos
conhecimentos nos
ramos industriais
e financeiros;
o Conde
de
Margaride
e
o Barão
de
Pombeiro,
dois nobres morgados, de pura linhagem, herdeiros
de casas
abastadas
e ricas,
acalentadores
da fé
política e servidores porfiados dos
progressos
e grandezas
de
Guimarães:
os Drs.
Avelino
e Formiga,
médicos de consciência
e de
regular clientela, um alto
e bem parecido, fatiota elegante e desenxovalhada, flor berrante na
botoeira,
nariz
de malagueta, que
mal segurava as lunetas
bizarras, pêra
assobiada,
mefistofélica, e bigodes
arrogantes
de guias
cofiadas; o outro, o Formiga, talvez
melhor, era mais sóbrio,
metido nas encolhas,
mas
atiçado de curiosidade, sabendo
ouvir e falando
prudentemente pouco,
ambos, porém
abstémios
de todos os
vícios
e de todos os males, boas pessoas
e incapazes de matar uma
mosca
se lhes ferrasse
na careca.
Avelino Germano da Costa Freitas. Retrato a óleo de Abel Cardoso, 1909, da colecção da Sociedade Martins Sarmento, |
Com
menor frequência. de quando em quando, por ali aparecia o Abel
Cardoso, que se repartia por várias tertúlias, a da farmácia
Rodrigo Dias, a do mercador do Poço. etc. Entrava insinuantemente
como esperado mordomo em reunião de Mesa. sem atrigação, olhar
acariciante, passadas resolutas e precisas, com aquelas suas barbas
emblemáticas, respeitáveis e bem tratadas, chapeirão de abas
largas, modelo único de reputação exótica, todo inteiriço no
aprumo do seu trajar negro, figura garbosa, agigantada, de seiva
estuante, na semelhança dos robles alentados dad florestas virgens.
Todas
citas figuras, que atingiram os seus resultados de coroamento, nas
críticas refregas deste torvelinho sumidoiro da vida, desapareceram,
deixando a maior saudade e os respeitos recordativos, a muitos dos
que se vão aproximando da linha patética da chamada
Um
só, destes
qualificados corifeus,
de gema
distinta e
vinculada, como as linhas
das árvores de costado de nobres
gentes, um só, o ilustre e venerando artista pintor Abel
Cardoso,
atingiu idade macróbia,
e, à borda dos 90 anos, é
ainda
a relíquia viva duma arte representativa, deslumbradora
de colorido e
de verdade, porque Abel Cardoso, a quem respeitosamente
saudámos
nesta
passagem de recordações, sendo uma alta e extraordinária
personalidade de artista pintor
dentro de uma geração de nobres
talentos, soube encarreirar com aprumada segurança a fertilidade do
seu labor. E nunca se
desligou, antes sempre inteligentemente acompanhou, as directrizes
clássicas
e eternas duma arte impressivo e expressiva que o tornou uma
individualidade inconfundível, respeitosa
e respeitável de mestre dos mais
prestigiosos.
Estes
distintos e cimeiros valores clássicos da literatura e
da arte, que saudosamente
relembramos, as academias literárias, as tertúlias eruditas,
as reuniões salutares
onde pontificam a inteligência e o espírito, os
devaneios
da mocidade, as caminhadas de peregrinação
e de estudo às
penhas e aos outeiros das cidades mortas, são para nós recordações
dos velhos tempos e
das
velhos amizades, que só
a morte apagará do nosso
coração afectuoso.
(1)
Refere-se à Academia Problemática de Guimarães. O seu fim
era tratar de assuntos de História e científicos.
(2)
Esta tela encontra-se na secção Arte contemporânea da
Sociedade Martins Sarmento.
Alberto
Vieira Braga
Notícias
de Guimarães, 12 de Janeiro de 1964
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