Como acontece quase todos os anos por estes dias,
voltam-se a ouvir opiniões que enfatizam a ambição de dar relevância nacional à batalha de S. Mamede, enquanto data que assinala a fundação da nacionalidade
portuguesa. Aqui há uns tempos, chegou a haver um movimento no sentido de lhe dar
a condição de feriado nacional e, até mesmo, de Dia de Portugal (movimento que
era sustentado, essencialmente, pelos militantes locais de uma juventude
partidária e que esmoreceu quando o seu partido chegou ao poder e eliminou uns
quantos feriados nacionais, a bem da austeridade). Esta é uma discussão antiga
entre nós, embora não seja, nos dias que correm, das que mais estimulam os nossos historiadores.
Acácio Lino pintou, em 1922, um mural no edifício do
parlamento português a que deu o título A
Primeira Tarde Portuguesa. Representava a Batalha de S. Mamede que, à
altura, ainda não tinha, mesmo em Guimarães, a dimensão consensual de dia inicial de
Portugal (só em 1928 é que a data foi assinalada, pela primeira vez, na Cidade Berço com
celebrações dignas de registo e só em 1974 é que passou a ser feriado
municipal).
Além da Batalha de S. Mamede, outras datas têm sido sinalizadas
como o momento em que Portugal nasceu: 25 de Julho de 1139 (Batalha de Ourique,
na sequência da qual Afonso Henriques se proclamou rei de Portugal), 5 de
Outubro de 1143 (Tratado de Zamora, em que Afonso VII, rei de Leão e Castela, reconhece a independência de Portugal), 23 de Maio de 1179 (data da bula Manifestis Probatum, na qual o papa
Alexandre III reconhece a Portugal como país independente e Afonso Henriques como o
seu rei) ou mesmo uma data incerta de Março de 1249 (quando Afonso III
concluiu a reconquista do Algarve, ideia defendida numa comunicação apresentada na sessão de abertura do II Congresso Histórico de
Guimarães pelo medievalista A. H. de Oliveira Marques).
Não se nega a importância do 24 de Junho de 1128
como data incontornável no processo de fundação da nacionalidade, embora
geralmente se aceite que a Batalha de S. Mamede não foi o início, nem o fim, do
processo de afirmação e consumação da aspiração da independência de Portugal.
Não foi nesse dia que brotou a ideia de Portugal, nem foi no final dessa
batalha que Afonso Henriques se passou a intitular de rei de Portugal. Mas é certo que foi em
terras de Guimarães que aconteceu a primeira
tarde portuguesa pintada por Acácio Lino, de onde lhe vieram os títulos de Berço da Monarquia e de Berço
da Nação e a divisa Aqui Nasceu
Portugal que ostenta na última das torres da sua velha muralha.
Em Fevereiro de 1979, o jornal O Povo de Guimarães
publicou um texto com um título aparentemente provocatório (Guimarães: aqui não nasceu Portugal), em que o jovem Domingos Sequeira, depois
de ler um artigo em que o historiador José António Saraiva defendia que a
origem da ideia de Portugal já
existia, pelo menos, aquando da conquista de Coimbra por Almançor, no longínquo
ano de 987. No final do artigo, o autor pedia a opinião do director do jornal, o
historiador José Craveiro, que a deu na edição do dia 1 de Março.
Aqui fica.
O Berço
Com muito gosto daria uma mãozinha de ajuda, a que
me roga Domingos Sequeira (parte final do seu artigo aqui publicado duas
semanas atrás), na monda de dúvidas, suas e alheias, relativamente à origem da
pátria portuguesa. Dá-la-ia com muito gosto, se tivesse foice temperada para
segar dúvidas sem molestar certezas. Não me atrevo a esse campo. O mais que
posso é tentar aliviar das pedras em que tropecei os caminhos que já percorri.
Vamos a elas.
Não basta ser passada e verdadeira para que uma
acção humana seja histórica. A historicidade de um evento afere-se pelos
efeitos, dele decorrentes, significativamente actuantes na estruturação do ser
e na motivação do agir da comunidade social em que ocorreu e se tem em estudo:
uma família ou tribo: uma cidade ou província; uma nação ou a humanidade. Tal
significação pode um facto tê-la, e vultosa, para a história local e não ter
nenhuma, nem pitada, para a da comunidade nacional. Dessa espécie suou
Guimarães um notável exemplo no levantamento, com cívico entusiasmo, de uma
simples praça de touros...
Como Ciência que pretende ser, a História obriga
os seus cultores ao crisol do espírito de rigor e à procura estrénua da
rigorosa verdade. Mitos tem, porém, havido, e há, historicamente mais fecundos do que poderiam ser as narrações, em verdade nua e crua, dos acontecimentos
sobre os quais se confabularam tais mitos.
O historiador busca a verdade para fazer a
História (ciência) de uma certa realidade; mas não é ele que faz história — a
realidade que é objecto da sua ciência. Uma tal realidade, é uma comunidade
social que, em seu dinâmico devir, a cria, indiferente a que haja ou venha a
haver coca-bichinhos interessados em cocabichar tal criação e suas
circunstâncias.
Mitos são produtos da fantasia; mas a vivência dos
mitos é uma realidade psicossocial, logo sociopolítica, de incidência e
significação históricas mais ou menos relevantes. As lágrimas que
Alcácer-Quibir fez verter regaram por certo o chão da História dos Portugueses;
mas não tão profundamente, por certo, como o fez a fábula tecida sobre a
sobrevivência de D. Sebastião.
O feito atribuído à padeira Brites de Almeida, que
em Aljubarrota exterminou com a pá do forno sete soldados castelhanos — é
absolutamente incrível (por muito Almeida, muito Brites e muito padeira que ela
fosse), se referida a soldados armados e equipados em condições normais; só é
objectivamente crível, se perpetrado sobre sete fugitivos, desgarrados de um
exército em derrota em país hostil, famélicos, eventualmente feridos; mas volta
a ser incrível se o pensarmos como acto procedente de coração feminino — de
mulher-esposa ou mulher-mãe, incrivelmente despejado dos mais elementares
sentimentos de piedade e misericórdia. O relato não está documentalmente
fundamentado; mas anda aí, nas bocas, nos livros, nas escolas e, portanto, nos
corações. A história verdadeira é a história do ódio espesso e fundo que mora
nos corações. A história de Brites de Almeida é a história desse ódio velho
contra as ambições (e seus agentes) que reiteradamente têm estrumado de perigos a Terra duma
independência estremecida. Assim a realidade se faz fantasia; e assim a fábula
se faz história.
Guimarães crê-se berço da pátria portuguesa. “Aqui
nasceu Portugal” é a consigna. Inscrita num plano da velha muralha, não é
certamente lição para aprendizes de História; é, com certeza, afirmação de
orgulho colectivo, motivação folclórico-turística para forasteiro ver. Pois que
seja. Interiorizada nas consciências individuais, elemento conformante da
consciência colectiva, que a vive, é, por isso que a vive, respeitável e útil.
Outras vistas, mais minuciosas e exigentes, tem
para o assunto o espírito crítico. E, para ver melhor, vê menos. Não verá, por
exemplo, que um berço possa ser lugar de nascimento, mas verá que pode ser e é
ninho de vida, antes nascida e antes disso gerada. Verá por exemplo, que o
campo de uma batalha ou a cintura de uma povoação são lugares geograficamente
insuficientes para a formação de uma pátria, cuja geração carece de um tempo
histórico que por nenhuma batalha pode ser medido. As pátrias que efectivamente
nasceram foram geradas, na comunhão de vivências, pela convivência e acomodação
de interesses materiais e espirituais, no grupo e no grupo dos grupos,
solidariamente actuantes pára a concepção de projectos comuns e para a sua
realização. À porra e a maçã, não. Por actos de guerra, destroem-se ou
sujeitam-se pátrias. Uma Aljubarrota, que se ganha, manifesta uma pátria que já
é, e consolida-a, robustece-a; uma Alcântara, que se perde, revela uma pátria
dessorada, que tem de pôr-se a destilar, para se depurar.
Nenhum Napoleão pode, com metralha vitoriosa,
fazer mais França do que a sua França; o que pode é compreendê-la.
A batalha de S. Mamede impôs uma
política, produtora de arranjo novo nas partilhas e hierarquias feudais da
parte cristã da Península. E já não é pouco. D. Teresa dava-se o título de
rainha, como as manas, só porque era filha do pai Afonso, “imperador dos
soberanos das duas religiões”. E havia para aí reinos, os “taifa” muçulmanos
principalmente, que pouco mais cobririam, na terra, do que a sombra do castelo
do seu rei. Muita parra... quer para unir o dividido, quer
para dividir.
A batalha de S. Mamede pode não ter
gerado uma pátria. Mas ajudou a afeiçoar-lhe o ninho. E já não é pouco.
José Craveiro
O Povo de
Guimarães, 1 de Março de 1979
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