Quando o castelo de Guimarães foi a monumento nacional, Lisboa roeu-se de inveja.


No dia 5 de Setembro de 1908, o Diário do Governo publicou o decreto que classificava o velho castelo de Guimarães como monumento nacional. O articulista da revista Ocidente que redigiu a notícia saudou a distinção de que fora alvo o castelo da fundação, descreveu-o e contou parte da sua história, com alguma lenda à mistura. Porém, não conseguiu ocultar o que lhe ia na alma, onde se percebe que morava uma pontinha de inveja.



O castelo de Guimarães
O Diário do Governo do dia 8 do corrente publicou o decreto, que considerou o castelo de Guimarães monumento nacional, coisa, enfim, que ao venerando castelo histórico, de há muito cabia, e que no espírito de todos os portugueses, mais ou menos conhecedores da história pátria, estava assente e se impunha, sabendo-se que ele era o berço da monarquia e coevo da nacionalidade portuguesas, no que só lhe leva dianteira o castelo de Lisboa, cuja origem se perde na distância dos tempos, para além do domínio árabe na península.
O título, pois, de monumento nacional, andava no espírito das gerações que se tem sucedido nesta nacionalidade de nove séculos, em que cada uma foi acrescentando sempre novos foros de glória ao vetusto castelo, teatro de tantos feitos heróicos.
Sem irmos agora esmiuçar a sua historia, passemos de relance o solar dos condes D. Henrique de Borgonha, onde nasceu a 25 de Julho de 1109, D. Afonso Henriques, fundador da monarquia portuguesa.
Sem nos determos a referir as cenas de discórdia que a dentro de seus muros se deram entre o conde D. Fernando Peres de Trava com a rainha D. Teresa. que lhes valeu o ser expulsa do governo; sem historiar o apertado cerco que D. Afonso VII de Leão pôs ao Castelo de Guimarães, em 1127, e em que aparece Egas Moniz, o honrado aio de D. Afonso Henriques, a empenhar a sua palavra com o rei leonês para levantar o assédio, encontram-se a cada passo factos históricos ligados ao venerando castelo, como o da resistência que ali fez o seu alcaide Mem Rodrigues de Vasconcelos, aos ataques do infante D. Afonso e da sua tropa, quando dele se queria apossar, em 1323, como e outros castelos se havia assenhorado, na revolta em que andava contra seu pai, o rei D. Dinis, acendendo pelo reino a guerra civil, que só sua mãe, a rainha D. Isabel (depois Santa) conseguiu apagar e fazer as pazes entre pai e filho.
Anos depois, no reinado de D. Fernando I, este monarca seduzido pela coroa de Castela, que fidalgos e prelados castelhanos lhe vieram oferecer, para destronarem Henrique II, o fratricida que assassinara seu irmão D. Pedro I, o Cru, para se apossar do reino, trouxe a Portugal os asares de uma guerra com Castela, donde resultou um vigoroso assédio que Henrique II veio pôr a Guimarães e ao seu Castelo, de que este mais uma vez ficou triunfante.
Quando o mestre de Avis, proclamado rei D. João I, se foi pelo reino sujeitar à sua obediência os castelos e povoações, é no Castelo de Guimarães que encontrou obstinada resistência, pois o alcaide Aires Gomes da Silva, com os seus oitenta anos e os seus oitocentos homens que o defendiam, não o queria entregar, fiel ao rei de Castela, capitulando só ao fim dos numerosos assaltos e quando se viu perdido.
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O castelo de Guimarães com as suas sete torres quadrangulares ligadas por lanços de muralhas ameadas, elevando-se ao centro sua torre de menagem, também quadrangular e ameiada, ergue se mais para o norte, em colina pouco elevada, presidindo ao velho e venerando burgo que deu origem à vila e hoje cidade de Guimarães.
A sua situação é das mais pitorescas, como de resto é toda a província do Minho de verdejante e exuberante vegetação, e os horrorizes que do alto de suas torres se descobrem de indescritível beleza. É o exemplar mais puro e melhor conservado que existe no país, de fortaleza do século X.
Mas além desta circunstancia de todo o ponto apreciável, tem ainda a de conservar, tanto quanto possível, o paço do conde D. Henrique, como uma das maiores curiosidades para ver. Essa residência, meio derruída, que foi também paço de D. Afonso Henriques, que ali nasceu, como ficou dito, dá boa ideia da modéstia e simplicidade do viver daqueles tempos, que mal se compreende hoje, através do fausto de que a realeza, principalmente, se foi revestindo até nossos dias.
O paço tem dois andares baixos e acanhados, suas janelas são quadradas de verga direita e divididas a meio por um pilar de pedra, sextavado, constituindo isto curioso estudo sobre a arquitetura dos séculos X e XI, em que o estilo gótico ou ogival ainda não existia em nosso país. A sala principal apenas tem duas janelas nos seus extremos e uma tosca chaminé; os restantes aposentos, que são poucos, deixam ver, apesar da ruína, quanto eram mesquinhos e simples.
Não podia ser mais pobre, para assim dizer, a habitação real, e quando o soberano tão parcamente vivia, que se poderá pensar do viver dos seus vassalos!
Com que humildade este reino se fundou, só engrandecido pelo valor das armas de seus filhos, e como ele viveu pobre até ao século XVI. Então vieram as riquezas do Oriente, trazidas pelos navegadores portugueses, deslumbrar este povo, que se lançou em sua busca, com tanta glória como proveito. Que de riquezas entesourou, despendeu e deu, e ainda lhe restam, depois de largamente delapidadas, por todos os cataclismos humanos e cósmicos, que tem devastado este país!
O Castelo de Guimarães é, enfim, oficialmente considerado monumento nacional; quando se decretará igual título para o castelo de Lisboa?
O Ocidente, 32.º ano, volume XXXI, n.º 1074, 30 de Outubro de 1908, pp. 235-237.

NOTA: A data indicada (8 de Outubro de 1908) está errada. O decreto que classifica o Castelo de Guimarães como monumento nacional foi assinado pelo rei D. Manuel II a 27 de Agosto de 1908, tendo sido publicado na edição do Diário do Governo de 5 de Setembro do mesmo ano.

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