O
reputado bibliotecário-arquivista Pedro de Azevedo (1869-1928), que
foi conservador da Torre do Tombo, não conhecia pessoalmente o Abade
de Tagilde, a não ser de o ter encontrado um par de vezes em Lisboa,
no Arquivo Nacional, onde o nosso historiador andava à volta com os
documentos que publicou nos Vimaranis Monumenta Historica.
Quando João Gomes de Oliveira Guimarães faleceu, em Abril de 1912,
Pedro de Azevedo escreveu uma nota necrológica para a Revista
Histórica, onde escasseavam os
elementos biográficos, que ele manifestamente desconhecia. Porém, o que lemos é naquele texto muito mais importante do que a narração dos
factos da vida do Abade de Tagilde, é o que dele ficou de mais
perene e memorável: o conhecimento e o reconhecimento da sua obra.
O
texto que aqui reproduzo chegou-me através de um amigo, Nuno
Saavedra, que, como o padre Oliveira Guimarães o fez no seu tempo, mergulha nesse outro, e imenso, arquivo, que é a Internet, onde desencanta preciosidades como a que se segue e que,
generosamente, partilha com os que se interessam por Guimarães,
a sua história, o seu património e as suas tradições.
Abade de Tagilde (gesso de António de Azevedo, do Arquivo Municipal Alfredo Pimenta) |
Abade
de Tagilde
Não
obstante os seis milhões de habitantes que Portugal deve hoje
conter, o numero de indivíduos que se consagra a trabalhos puramente
intelectuais
é muito reduzido, defeito que não
é só de hoje, pois que já o encontramos em épocas mais antigas.
Nesta apreciação
não nos devemos seduzir pelo número
elevado de médicos, professores, jornalistas, advogados,
eclesiásticos e outros profissionais que as estatísticas nos dão.
Um verdadeiro intelectual é só o que tem a faculdade de arrancar à
natureza ou ao espírito
os seus segredos, o que não se consegue sem o trabalho autónomo
da razão.
O
vulgo, como não pode compreender matérias que estão superiores à
sua inteligência,
materializa essas figuras e procura-as aproveitar. Foi assim que se
procurou lançar na política a Gama Barros, o nosso mais capaz
historiador do Direito, e Teófilo
Braga, Braamcamp Freire e outros foram convertidos em joguetes nas
mãos de facções ferozes, com perda dos estudos nacionais e
menoscabo da sua consideração
no presente
e no futuro. Eles que deveriam e poderiam ser juízes,
convertidos em réus
sem defensores perante individualidades
pequenas em todo o sentido!
É
por
isso duplamente difícil em Portugal
haver indivíduos de iniciativa científica,
porque além de terem de vencer a própria natureza, são obrigados a
arrostar com o meio que busca mudar-lhes o rumo.
Há
mesmo em Portugal estudos que estão completamente extintos como os
filosóficos
e religiosos, justamente aqueles que mais poderosamente contribuem
para a formação do carácter
e para a autonomia do pensamento.
Os
estudos históricos levam uma vida precária,
o que ainda assim é preferível a serem deturpados na sua genuidade
por interesses sectários.
Pelo
pais encontramos ainda alguns raros cultores de história
local, que nos merecem todo o nosso reconhecimento.
Um
desses beneméritos,
o abade de Tagilde, J. G. de
Oliveira
Guimarães, baqueou há
poucos meses,
surpreendido pela morte
no labor de sua obra valiosa não só para o concelho de Guimarães,
como para a historia geral da nação. Até o século
XV, antes da extrema centralização a que chegámos, a vida da
província influía
consideravelmente na marcha dos negócios
públicos, e por isso a publicação dos monumentos para a história
do concelho de Guimarães, onde se contem muitos documentos inéditos,
é apreciada mesmo fora
daquele centro industrial.
Esta
obra com que o abade de Tagilde fechou a sua actividade literária
e a sua vida foi o notável complemento de outros trabalhos. A
publicação dos documentos medievais do mosteiro de Souto onde o
extinto revelou os seus não vulgares conhecimentos paleográficos;
e o inventário
dos pergaminhos que ainda se conservam na Colegiada de Guimarães já
tinham consagrado o extinto como um erudito de qualidades notáveis.
É-me
impossível
dar notas biográficas
do simpático
abade, a quem por duas vezes encontrei no Arquivo Nacional; mas
certamente a Sociedade Morais [sic] Sarmento, de Guimarães, de que ele era
um dos mais notáveis ornamentos, os não deixará de dar como
sentido preito do seu desaparecimento.
Pedro
de
Azevedo.
Revista
de História, n.º 3, Jul./Set. de 2012, da Sociedade Portuguesa de
Estudos Históricos, Lisboa, 1912 (disponível na Hemeroteca Digital
de Lisboa)
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