Na
sua edição de 16 de Janeiro de 1928, a revista Ilustração
publica uma reportagem assinada pelo Repórter X
(Reinaldo Ferreira), acompanhada por uma fotografia de Santos Lima,
de Braga. Descreve uma viagem do jornalista de Braga a S. Torcato, que continuaria
em direcção a Guimarães. Em S. Torcato, visita a igreja, onde,
“dentro de uma urna de cristal, está um corpo mumificado”, S.
Torcato. O repórter descreve a igreja, “de acinzentada pedra e
nodosas torres”, e o santo, em que o tempo foi “empedernindo a
epiderme, formando numa só massa de granítica dureza, carne e
ossatura”.
Em
seguida, dá conta do seu encontro com o surpreendente “sineiro liliputiano” da
igreja, que se chamava Agapito Alves Pinta e que, com “dois palmos
de altura apenas”, seria, “sem dúvida, o mais pequeno de todos
os sineiros da terra”. O mais pequeno e o mais improvável. Tão
improvável que ficamos com
dúvidas sobre o ponto em que, na narrativa de Reinaldo Ferreira, se transpõe a fronteira
que separa a realidade da ficção que, como já vimos, naquilo que escrevia o
imaginoso jornalista, era muito ténue. Nesta reportagem, o pequeno
Agapito Pinta executa nos sinos da igreja, de ouvido, de improviso e de repente, um trecho da moda que
acabava de ouvir trautearo. Num texto que publicará mais tarda, descreverá o sineiro como “um petiz de 10 anos que, empoleirado num banco e sacudindo ascordas num êxtase de pianista inspirado, arrancava ao bronze dossinos divinas harmonias como se as almas de Beethoven, Schubert, Mendelssohn, cujas composições ele interpretava... de ouvido, voassem em redor daquela pequenina alma, guiando-a generosamente”.
Tocar de ouvido, puxando as cordas dos sinos, composições que
instrumentistas com escola têm dificuldade em executar, afigura-se prodígio inaudito num rapazote com dez anos que andava descalço pelo terreiro da majestosa igreja de de S. Torcato.
Aqui fica a reportagem, com um agradecimento ao incansável Nuno Saavedra, a quem a devo.
Em S. Torcato – Agapito, o mais pequeno sineiro do mundo
O nosso colaborador Repórter X entrevistando, frente à nova Igreja de S. Torcato, Agapito, o mas pequeno sineiro do mundo. (Foto Santos Lima, de Braga) |
Saímos
da cidade, formando um pequeno cortejo com autos, que o Aguiar,
cônsul honorário de Lisboa em Braga, organizara em nossa honra. Se
a lei das reencarnações, dogma de teósofos, se estendesse até às
matérias, aos aços, às máquinas, diriam que eram zebras, despidas
das decorações listradas dasn suas peles, sintetizadas até à alma
– o que palpitava, dentro dos motores, reencarnados no invólucro
luxuoso daqueles autos. Durante duas horas as estradas, que um giz
enorme riscara a branco, a meio dos montes, à beirinha dos abismos,
eram tragadas, numa glutoneria insaciável.
—
Para onde vamos? indaguei ao
artista do volante ao médium em comunicação com as almas
das zebras que agitavam o motor.
E
ele sorria, num sorriso que era a promessa de um artigo...
*
* *
Paisagem...
Bosques que nos espreitam, do alto dos montes e que vão logo
esconder-se, assustados. por detrás de jardins… E as vinhas,
exército que à distância parece liliputiano, galga. com furores de
carga, as encostas polícromas. Cada curva da estrada, é uma página
de álbum que se folheia; é um postal inverosímil que se contempla.
É o Minho, palco de Folies Bergères, exibindo
as múltiplas feeries dos seus cenários floridos...
Por
fim, surge-nos, ao longe, como a mão enegrecida dum caminheiro,
firme, espalmada, de dedos espetados, impondo-nos um “alto”
àquela vertigem: eram as torres da Igreja de S. Torcato.
E
o artista do volante, obedecendo ao “alto”, fez ranger os travões
– e anuncia:
–
Eis as surpresas prometidas.
*
* *
Apeamo-nos....
velha igreja de S. Torcato, de acinzentada pedra e nodosas torres,
recorda, de facto, a mão suja de um caminheiro. Mas ladeando-a e
vendo a parte reconstruida – imaculada na brancura dos seus
mármores polidos, temos a impressão que o caminheiro deixou ali,
dependurada do céu, a luva alvíssima... mas que em breve a calçará
de novo
Entramos
no templo. Na sacristia, as paredes estão cheínhas de quadros
coloridos... No Minho, as promessas, os agradecimentos aos milagres
dos santos, são patenteados pelo pincel de pitorescos artistas,
singularmente expressivos, no primitivismo dos seus processo... O
motivo é quase sempre o mesmo... Um doente em cama de rubra
cobertura, cercado pela família, que se ajoelha, contemplando
pasmada e agradecida, a visão do santo milagreiro, aureolada de
anjos.
Sobe-se
ao altar, e no altar, dentro de uma urna de cristal, está um corpo
mumificado... É o corpo de S. Torcato... um cadáver que data de há
mil e tantos anos…
*
* *
Contemplo-o,
com fixa atenção... Um papa houve que o fez santo... Santo e bem
próximo de Deus deve estar, se pesam os milagres que lhe atribuem e
a fé, que ao povo inspira... Contudo, não consegui conter o
sacrilégio tio meu olhar, que apenas perscrutava, esquecido da
santidade da imagem, o mistério dos dez ou onze séculos
simbolizados naquele corpo. O tempo, empedernindo a epiderme,
formando numa só massa de granítica dureza, carne e ossatura, não
destruiu o desenho do rosto, a luz subtil da expressão. A morte não
o veio surpreender na velhice. Aparenta uns quarenta anos, se
tanto... Foi bispo em Braga, antes da fundação do reino, e foi
soldado da guerra santa da guerra contra a mourama. E bravo! Do
exército que comandava restava-lhe um punhado de homens que lutou
até morrer... Refugiaram-se num bosque; os sarracenos farejaram-no –
chacinando-os depois. E é ainda bem visível no pescoço, à
direita, a frincha aberta pela cutilada que o prostrou, enviando-o,
tal como estava, para uma longa caminhada, tão longa que chegou até
mim e passará para além da decomposição do meu corpo...
*
* *
Estranho
pensamento! Custa-me repeti-lo em voz alta... Por muitas descrições
que se leiam sobre os homens das eras passadas; por muitos retratos
antigos que se tenham oferecido A nossa contemplação e estudo, no
fundo da nossa alma existe sempre uma dúvida... É que o “tipo
humano”, o “modelo” que está em moda desde que nascemos,
difere do das outras épocas; o que, quantos mais anos o tempo
recuar, maior diferença entre os recortes fisionómicos...
E
é da dúvida dessa diferença que nasceu a minha curiosidade sobre
os homens do passado. Como seria César? E Aníbal? E Viriato? E
Afonso Henriques? Nós bem sabemos que os historiadores os descrevem
de nariz aquilino, como Mussolini, ou de barbaças, como o Guerra
Junqueiro, mas não acreditamos nos historiadores.
Tenho
à minha frente o corpo de S. Torcato, do que foi bispo, do que viveu
para além do ano 1000... Está tal e qual como morreu – há dez
séculos... Procuro adivinhar, ansiosamente, no “modelo” da sua
expressão, no “tipo” do seu rosto, como seriam os “homens da
sua época”. Não encontro diferença... S. Torcato assemelha-se,
na correção do perfil, na finura dos lábios em toda a moldagem
craniana, a centenas de “homens” – a todos os homens que se
vestem do modelo plástico da minha época.
*
* *
Quando
saímos do Templo, os sinos repicavam, alegres, festivos, desenhando
harmonias no espaço azul...
–
Prepare-se para o segundo
assunto... – ousou o meu cicerone.
–
?
–
O sineiro...
–
Toca bem... confessei por
desfastio. Sinto que é um artista... Mas tenho conhecido tantos
sineiros..
–
Como este não conheceu
nenhum...
Aguardei,
sem impaciência, o fenómeno prometido. E quando ele apareceu, dei
razão ao companheiro de viagem: como aquele não tinha conhecido
nenhum...
É
que o sineiro da igreja de Santo Torcato, tem dois palmos de altura
apenas. É, sem dúvida, o mais pequeno de todos os sineiros da
terra.
*
* *
Enquanto
Santos Lima, esse admirável artista do retrato, nos kodakisa,
pergunto ao sineiro liliputiano, como se chamava: Agapito Alves
Pinta.
–
Tenho dez, anos – e preciso
pôr-me nos bicos dos pés para chegar às cordas... E já toco há
mais de um ano...Vim substituir meu irmão, que anda tolhido com
reumatismo, coitado..
–
E gostas de música, rapaz?
–
Muito... Mas prefiro o sino a
todos os instrumentos.. Só os sinos sabem deitar cá para fora, o
que a gente começa a pensar cá dentro. Se estamos contentes –
Blão! Blão! Blão! – e a nossa alegria vai por toda
a parte... Se estamos tristes, Tlon! Tlon! Tlon! –
e todos têm peninha da nossa tristeza...
–
E o teu reportório é muito
complicado?
Por
reportório não compreendeu. Expliquei-me melhor. E ele
responde:
–
Ah! É, sim senhor... E
basta-me ouvir uma vez...
Alguém
assobia a Canção da Espiga, julgando trazer uma novidade...
–
Isso já eu estou farto de
saber... informa o pequeno sineiro.
Cantarolei-lhe
então um trecho em moda... E ei-lo que corre e galga a torre e lá
de cima a reproduz, agitando os sinos, que pareciam línguas de
bronze, espreitando pelas bocas de mármore da torre.
De
volta ao átrio, pergunto-lhe:
–
Quanto ganhas ?
–
Dez escudos por dia, fora as
gratificações...
–
E com quem aprendeste a ser
sineiro?...
–
Com meu pai... O “velhote”
sabe muito de música... Ensinou a sua arte a todos filhos e desde
pequeninos... Tem lá em casa uma colecção de muitos sinos e é
nela que nós nos habituamos a tocar... Já o meu avô era sineiro...
E o pai do meu avô também...
Despedimo-nos.
Os autos tomaram a estrada de Guimarães... E ouvimos, durante algum
tempo, os sinos de S. Torcato, badalando, alegres, festivos, como a
dizerem-me adeus... E eu pus-me a pensar no sr. Charles Maurras e nas
teorias tradicionalistas tão bem representadas por aquela longa
dinastia de sineiros, rematada pelo Agapito Alves Pinta, que tem dez
anos e dois palmos de altura..
Repórter
X
Ilustração,
n.º 50, 16 de Janeiro de 1928, pp. 33-34.
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