Oh, Romeu, fosse ela, oh, fosse ela / um etecetera aberto, e tu uma pêra poperina!
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A nossa nêspera aparece em quatro obras de William Shakespeare (1564-1616), o maior de todos os dramaturgos e o mais notável escritor de língua inglesa. A nêspera tem, em Shakespeare, diferentes significados e representações simbólicas, que vão desde a figuração de fealdade dos seres humanos, seja física ou de carácter, à representação do que jamais amadurecerá antes de apodrecer ou a referências explícitas aos actos e instrumentos da sexualidade humana.
Shakespeare introduz a “nêspera podre”, com o significado de pessoa
repulsiva, numa passagem da peça Medida
por Medida, uma comédia sombria de 1603. Surge num diálogo entre duque Vicêncio,
governador de Viena, pouco dado a pompa e a circunstância e Lúcio, um egoísta janota,
frequentador de bordéis e utilizador recorrente de linguagem desregrada. Era o
pai de um bastardo, nascido de uma prostitua filho a uma prostituta, de que
fala numa passagem do IV acto:
LÚCIO — Certa vez fui levado à sua presença, por ter engravidado
uma donzela.
DUQUE — Fizestes semelhante coisa?
LÚCIO — Por que não? Mas jurei a pés juntos o contrário, para não
ser obrigado a casar com aquela nêspera podre.
DUQUE — Senhor, vossa companhia é mais agradável do que honrosa;
passai bem.
Medida por medida, acto IV, cena III
Na peça Tímon de Atenas,
em que satiriza a ganância e a generosidade pretensamente desinteressada, Shakespeare
joga com o vocábulo que em inglês designa a nêspera, medlar, com a palavra
meddler, que significa intriguista ou bisbilhoteiro. Aparece num diálogo entre
o protagonista, Tímon, um ateniense rico e sem sentido de proporções, que, por um
lado, era generoso e acreditava na bondade dos homens e, por outro, cria que até
a amizade podia ser comprada, e Apemanto, um filósofo cínico e desagradável:
APEMANTO. Nunca conheceste o meio termo da humanidade, apenas os seus
extremos. Quando usavas roupas finas e perfume, riam-se da tua delicadeza
exagerada; com os teus andrajos, perdeste a delicadeza e és desprezado pelo excesso
contrário. Tens aí uma nêspera, come-a.
TIMON. Eu não como aquilo que detesto.
APEMANTO. Tu detestas as nêsperas?
TIMON. Sim, porque se parecem contigo.
Tímon de Atenas, acto IV, Cena III
Na comédia As You Like It
(cujas versões portuguesas têm tido diferentes títulos — “Como Gostais”, “Como
lhe Aproveitar” ou “Como vos aprouver”), a nêspera aparece como a representação
do que jamais alcançará a maturidade, porque apodrece antes de amadurecer, num diálogo
em que Touchstone, um bobo da corte dotado de boa dose de senso comum, e
Rosalinda, a filha de um duque exilado, espirituosa e de língua afiada, discutem
acerca de uns versos galantes. Touchstone pergunta a Rosalina porque é que,
sendo aqueles versos tão tontos, se deixara contagiar por eles.
ROSALINDA. Sossega, seu tolo estúpido. Encontrei-os numa árvore.
TOUCHSTONE. Em verdade, maus frutos dá essa árvore.
ROSALINDA. Vou enxertar-te nela e, a seguir, numa nespereira. Dará
os frutos mais precoces da região, porque tu apodrecerás antes de amadureceres,
e essa é a verdadeira virtude da nêspera.
As you Like it, Acto III, cena II
Mas a aparição mais surpreendente do fruto da nespereira europeia na
obra de William Shakespeare acontece em Romeu e Julieta, a tragédia que se transformou
no modelo do amor sublime, idealizado e platónico. Porém, o que a nêspera ali
representa nada tem de casto. Quem a traz à cena é o espirituoso Mercúcio,
amigo de Romeu, numa fala de um diálogo que mantém com Benvólio onde, a dada
altura, diz:
Se o amor é cego, não pode acertar
o alvo.
Agora ele vai sentar-se debaixo duma nespereira,
A desejar que a sua amada fosse aquela espécie de
fruta
A que as moças chamam nêspera, quando riem sozinhas.
Oh, Romeu, fosse ela, oh, fosse ela
Um etecetera aberto, e tu uma pêra poperina!
Romeu e Julieta, acto II, cena I
Se o leitor parou na última linha da
fala de Mercúcio, a pensar se ele tinha dito o que parece que disse, respondo-lhe
com o que encontrei num estudo sobre a misoginia desta personagem do Romeu e
Julieta:
(Sim,
ele disse realmente isso. E isso significa realmente o que você pensa que
significa).
Depois de lermos a fala de Mercúcio, não nos resta espaço para
grandes dúvidas acerca do que ele pretende significar quando utiliza as
expressões nêspera (medlar), “etecetera aberto” (open et coetera) e pêra poperina (poperin pear).
No idioma português, nêspera é uma das muitas expressões populares
que são usadas na linguagem popular para significar a genitália
feminina, assim como o traseiro, as nádegas ou o ânus (vai levar na nêspera, ó
cabeludo!). O mesmo acontece na língua inglesa, onde a nêspera (medlar) também é conhecida, desde a
Idade Média, pelo nome sugestivo de “open-arse”,
que, do mesmo modo, tanto pode referir-se à vagina como ao traseiro.
Parece certo que o “et coetera” que aparece nos primeiras edições impressas
do Romeu e Julieta terá sido introduzido
pela censura, como um eufemismo para “arse”. Em versões restauradas do texto se
Shakespeare, tem sido assumida a expressão “open-arse” em substituição do “et
coetera” postiço.
Quanto à “pêra poperina”, diversos autores afirmam tratar-se de
uma pêra originária de Poperinge, na Bélgica, que seria muito popular na Inglaterra
medieval, mas de que se terá perdido rasto. Teria um formato oblongo, com vislumbres
fálicos. Assim sendo, parece óbvio o sentido que Shakespeare lhe dá na fala de
Mercúcio. Há também quem decomponha a sonoridade de poperin em “pop-her-in”,
algo que poderia ser traduzível pela expressão, tão rude quanto explícita, “mete-lha”.
De qualquer modo, poucas dúvidas devem restar quanto ao que significam os
eufemismos “etecetera aberto” e a “pera poperina”, nem o que Mercúcio sugere
que Romeu e Julieta deveriam fazer com eles...
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As traduções dos trechos das obras
de Shakespeare utilizadas neste artigo são da nossa responsabilidade. Aqui
ficam os respectivos textos em língua inglesa:
Measure for Measure
Act 4, Scene 3
LUCIO
I was once before him for getting a wench
with child.
VINCENTIO, THE DUKE
Did you such a thing?
LUCIO
Yes, marry, did I; but I was fain to
forswear it. They would else have married me to the rotten medlar.
VINCENTIO, THE DUKE
Sir, your company is fairer than honest.
Rest you well.
Timon of Athens
Act 4, Scene 3
APEMANTUS
The middle of humanity thou never knewest,
but the extremity of both ends. When thou wast in thy gilt and thy perfume,
they mock’d thee for too much curiosity; in thy rags thou know’st none, but art
despis’d for the contrary. There’s a medlar for thee, eat it.
TIMON OF ATHENS
On what I hate I feed not.
APEMANTUS
Dost hate a medlar?
TIMON OF ATHENS
Ay, though it look like thee.
As You Like It
Act 3, Scene 2
ROSALIND
Peace, you dull fool, I found them on a
tree.
TOUCHSTONE
Truly, the tree yields bad fruit.
ROSALIND
I’ll graff it with you, and then I shall
graff it with a medlar. Then it will be the earliest fruit i’ th’ country; for
you’ll be rotten ere you be half ripe, and that’s the right virtue of the
medlar.
Romeo & Juliet
Act 2, Scene 1
V.1 - MERCUTIO
If love be blind, love cannot hit the
mark.
Now will he sit under a medlar tree,
And wish his mistress were that kind of
fruit
As maids call medlars, when they laugh
alone.
Romeo, that she were, 0, that she were
An open et caetera, thou a poperin pear!
V.2 - MERCUTIO
If love be blind, love cannot hit the
mark.
Now will he sit under a medlar tree,
And wish his mistress were that kind of
fruit
As maids call medlars, when they laugh
alone.
O, Romeo, that she were, O that she were
An open-arse, thou a pop’rin pear!
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