Em 1836, como já vimos, foi
estrondosamente chumbada em reunião da Sociedade Patriótica Vimaranense uma proposta para demolir o Castelo. Já vimos também que não tinha sido a primeira vez que alguém
tentou avançar com ideia tão peregrina. Também não terá sido a última. Em 1939
voltou a estar em cima da mesa, como nos diz Alexandre Herculano, na segunda
parte do artigo que publicou no jornal O panorama, em Fevereiro de 1839, com o
título “Monumentos”, onde, a dada altura, escreve, a propósito das obras que os
cónegos tinham mandado fazer na Colegiada:
E os habitantes de Guimarães que disseram, durante
oito anos que os vermes andaram a roer naquele cadáver?
Louvaram o bonito da nova obra: e alguns há que já se
lembram [segundo nos diz o nosso correspondente] de demolir os restos das
venerandas muralhas, que de tantos combates são testemunhas, e de pôr ao livel
do chão as paredes que ainda existem dos paços de D. Henrique; dos paços, onde
D. Afonso 1 .º nasceu, e onde, passados anos, entrou vitorioso do sua mãe, que
vendera a terra de homens livres por preço do amor do estrangeiro.
Arrasar-se-ão, pois, os restos dos muros alevantados pelo rei lavrador, e os
paços dos nossos primeiros monarcas, e apenas ficara aí o frontispício da
antiga colegiada, como esquecido pelos vândalos do pau dourado, e do estuque,
enquanto se aguçam as picaretas que o devem derrubar, ou se vai delindo a cal,
com que, para rasgar de todo o último documento de nobreza da velha Guimarães,
se há-de branquear e estragar esta última página do passado, para consolação e
regalo da ilustradíssima geração actual.
E haverá um governo que o permita?*
Texto de Alexandre Herculano, originalmente publicado
sem assinatura em O panorama: jornal
literário e instrutivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis Vol. III, 3.º da 1ª Série, N.º 93, 9
de Fevereiro de 1839, p. 44.
No jornal O Ecco, na sua edição de 12 de Novembro
de 1839, voltámos a encontrar referência à intenção de vender a pedra do
Castelo e do Paço dos Duques, num texto que reproduz de um outro periódico, O Paquete do Ultramar, onde se lia:
Assim vemos nós esses gigantescos edifícios que a
piedade erguera, caírem, uns no alvião da inovação, outros à fúria sistemática
dos tempos. Agora mesmo dois respeitáveis edifícios de Guimarães, os mais
velhos, os mais históricos foram louvados para serem vendidos!! Um é o Castelo!
o outro o Palácio do Duque D. Jaime! Monumentos orgulhosos, sobre cujas cúpulas
eternas tinham passado os Séculos! Ambos serão da fundação da Monarquia, e o
último servia de quartel desde a Guerra Peninsular; quartel em que a Nação
gastou muitos mil cruzados; para agora ver em terra, com o vil interesse de lhe
vender a pedra!! E não surgiram das sepulturas as sombras de nossos A vós, e
não suspenderam o alvião deste Progresso vandálico! Não haverá uma Câmara que
se oponha! Sofrerá o passado ser absorvido pelo presente! as recordações
históricas pelo esquecimento! e a glória do nosso nome pelo charlatismo
nivelador! Homens das inovações, sectários do vandalismo moderno, que mal vos
fez a nossa infeliz Pátria? quereis que este torrão chamado Portugal não seja
português? quereis que ele seja castelhano? envergonhais-vos se nossos Pais
venceram sempre os Castelhanos, e em 1640 anularam com heroísmo a venda infame
que traidores deles fizeram aos vassalos de Filipe! Que quereis vós? Grande
parte de nossos venerandos templos desapareceram da face do País para apagar os
Emblemas da Religião! Nossos monumentos históricos vão caindo para extinguir a
memória de nossos antigos feitos! Arrasai o Convento de Belém, que marca a
época do descobrimento da Índia! Arrasai o Convento da Batalha, que nos lembra
o combate de Aljubarrota, e a vergonha dos vossos amigos Castelhanos! Derrubai
a Estátua, que nos memora a reedificação da Capital, e o reinado de um grande
Rei! Vossa lava revolucionaria levou consigo a lei fundamental do País! nossos,
antigos códigos,
nossa indústria, nosso comércio, nosso exército, nossa riqueza; que mais
quereis!
O Ecco, Jornal crítico, literário e político, n.º 423,
12 de Novembro de 1839, p. 7162-7163 (transcrição de artigo publicado no n.º
104 da publicação Paquete do Ultramar)
O que diz Herculano,
baseado em informação que lhe fora transmitida de Guimarães é confirmado pela
acta da reunião da vereação da Câmara de Guimarães de 22 de Outubro daquele ano,
de onde se fica a saber que um tal Joaquim José da Cunha pretendia que lhe
fosse concedido, por aforamento, uma porção de terreno pertencente ao castelo. Naquela
reunião, foi cancelada a vistoria ao terreno pretendido, que estava marcada
para do dia 27 de Novembro daquele ano, até que se apurasse quem era o seu
proprietário, se a Câmara, se o Estado.
Não consegui apurar se a
vistoria se chegou a realizar. O que é certo é que, três dias depois da data
para que estava inicialmente prevista, a Câmara dirigiu à rainha D. Maria II um
pedido para que fossem conservados aqueles dois monumentos.
Não foi desta que o
castelo foi abaixo.
* A versão
refundida deste texto que foi publicada no segundo tomo dos Opúsculos de Alexandre Herculano é um
pouco diferente:
E que disseram os habitantes de Guimarães, durante
oito anos em que os vermes andaram a roer naquele cadáver?
Louvaram o bonito da obra. O longo tasquinhar do
cabido despertou-lhes, até, o apetite. Alguns lembram-se já de demolir as
muralhas da vila reconstruídas por D. Dinis. Talham ainda banquete mais lauto.
Tentam arrasar as paredes que restam dos paços do conde Henrique; dos paços
onde Afonso I, nasceu. A glória dos cónegos de Santa Maria, da Oliveira, tão
dispendiosamente; conquistada, ofuscar-se-ia, assim, por pouco dinheiro, como a
luz pálida da lua nos esplendores do surgir do sol.
Alexandre Herculano, “Monumentos Pátrios”, in Opúsculos – Obras Públicas, 1873, Tomo II, págs. 39-43
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