A Casa da Câmara de Guimarães em meados do século XIX. |
Ao folhear o periódico O Ecco
— Jornal Crítico, Literário e Político, encontro, da secção Revista dos Jornais
da sua edição n.º 290, que saiu no dia 4 de Agosto de 1838, um texto curioso, intitulado
Carta do cidadão Kikiriki Júnior ao Barbeiro,
em que o remetente descreve a sua perambulação por terras do Baixo Minho, nos dias
agitados do setembrismo. A viagem do cidadão Kirikiki é insegura e não isenta de riscos, como os encontros
mais ou menos imediatos com bandos de malfeitores que se dedicavam à capitalização dos incautos viandantes e com a agitação popular
contra novos impostos. Assim sucedeu em Braga, como na Póvoa de Lanhoso ou em
Guimarães, onde fica alojado na célebre estalagem da Joana, na Praça da Oliveira,
junto à velha casa da Câmara, a
Joaninha dos pastéis e dos romances de Camilo Castelo Branco. Estava o escriba a comer “duas tortas” quando foi sobressaltado por uma manifestação popular. Nesta
carta, o autor refere que a Câmara tinha consumido cem mil réis “em pintar um mono
de pedra que está sobre a Alfândega”, que vem a ser a estátua do Guimarães, o
das duas caras, que agora olha a mesma praça do alto dos antigos Paços do Concelho
(as
pinturas foram removidas em 1877, aquando da sua trasladação para aquele “pedestal”),
e a
sublevação dos soldados do 18 de Infantaria, de 7 de Julho, dominada pelo
seu comandante, Coronel José Teixeira de Mesquita.
Não estou
certo de quem fosse este Kikiriki, mas, pelo estilo da escrita, suspeito que fosse José
de Sousa Bandeira, pioneiro do jornalismo vimaranense (e português) que,
por aquela altura, colaborava no Periódico
dos Pobres no Porto.
~*~
Carta do cidadão Kikiriki Júnior ao Barbeiro.
Mestre: não lhe tenho escrito, porque estava nas Caldas a consertar
a humanidade: ontem me recolhi, e agora lhe vou dar parte do que sei.
Principiarei por lhe dizer que, saindo desta Cidade ao amanhecer, a prova que
vi da bondade da Prima Bernarda, foram, junto ao Sério, dois carreiros, um
morto, e outro a morrer, ambos roubados!!!! mau, disse eu; quando isto é ao sair
da Cidade, que fará la para diante? Estava quase vai não vai a fazer uma
retirada airosa; porém, como o dia ia rompendo, sempre me animei. Ao passar a
Terra Negra, encontrei uma súcia de salteadores, com as suas competentes
barbas, que estavam ali de propósito para sustentar o sistema que felizmente
nos rege: como porém até no inferno é preciso ter amigos, eu não fui roubado,
pois alguns eram do meu conhecimento: gente, já se sabe, muito capaz. Antes de chegar
a Vila Nova, encontrei o correio de Braga que, para provar a bondade do sistema
que felizmente nos rege, vinha acompanhado de uma escolta! Ora, eis aqui, disse
eu comigo, uma Nação feliz! Custou-nos, mas felizmente chegamos ao estado de
perfectibilidade que causa inveja!
Chegando a Braga, vi outra prova da bondade do sistema que
felizmente nos rege. Três ou quatro mil Chapeleiros e Tachinhas andavam
exercendo o direito de Soberania, e gritando defronte da casa do Bachalato =
Viva a Rainha, nada de tributos; morra o Administrador, e Montalberne que é a
causa dos nossos padecimentos. = Bravo, disse eu comigo: à vista disto, quem
não há-de dizer que a Nação é feliz! Antes das Ave Marias já este povo estava sossegado
em suas casas: ouço cornetas; é o Sr. General que, vem em auxílio do sistema
que felizmente nos rege: ele proclama em letra redonda, e ameaça, como amigo
dos Bracarenses, que passará tudo à espada se não estiverem quietos!!! Quê!
disse eu; pois num tempo constitucional sofrer-se semelhante linguagem, própria
de Ibrahim Bachá? Então o moço das bestas me respondeu: “Não repare: há certa
gente para quem a Constituição é no idioma hebraico! o absolutismo da
liberdade, continuou o gaiato, é artigo reservado a certas capacidades. Eu dava
um posto de acesso a este bravo General, se ele fosse proclamar assim ao povo Inglês,
quando ele se reúne nas praças para usar, como os Bracarenses, do direito de
petição! Mas bem sabe o gato as barbas que lambe.”
Querendo daí a dias passar a Falperra, pedi uma escolta, pois a capitalização
estava no seu auge por aqueles sítios: roubava-se que era um louvar a Deus! Ora
eis aqui, disse eu ao moço das bestas, o que se chama uma boa Polícia
Preventiva! “Não se admire, disse o moço das bestas: a Bernarda declarou guerra
às algibeiras, e concedeu cartas de corso! Tudo isto são belezas do sistema que
felizmente nos rege: os nossos netos são os que lhe hão de achar o gosto.” Atravessei
a Póvoa de Lanhoso, e chegando ao concelho de Vieira encontrei uns poucos de
homens a fugir; era a Câmara, pois que o povo também por causa do edital dos
dez por cento se tinha reunido à moda de Braga! Bravo! muito adiantado está o
progresso! disse eu; então o moço das bestas me respondeu: “Sr. meu amo, este
povo é tolo: não se apanham trutas a bragas enxutas: pois ele queria nomear um
Senador, e não queria fazer sacrifícios! Esta honra vale bem a pena de a gente
ficar sem os seus cobres.”
Assim caminhámos até que cheguei à vila de Guimarães: fui pousar à
estalagem da Joana, que fica junta aos Paços do Concelho; e, quando estava a
comer duas tortas, ouvi gritar, chego à janela, e vi muita gente junta:
averiguando o caso, disseram-me: “Há tempos que a Câmara, nossa senhora, convocou
os Eleitos a fim de lançarem tributos para as despesas do Município: porém os
Eleitos, mostrando que os vereadores ou comiam ou deixavam comer, abanaram as
orelhas, e parece que com razão, pois mostraram que em pintar um mono de pedra
que está sobre a Alfândega, tinha a Câmara gastado cem mil réis, quando uma
moeda era mais que suficiente! A Câmara representou; veio ordem para nova convocação,
reuniram-se os Eleitos; mas os Vereadores ficaram em casa! E como nada se fez,
os Eleitos estão aí à porta a berrar contra a Câmara, a qual não se reúne,
porque teve medo aos punhais!!!” Isto vai uma maravilha, disse eu ao moço das
bestas; e ele, lançando à sacristia um copázio do maduro, me respondeu: “Viva a
de 20, comamos todos.”
Como estive em Guimarães, quis saber como fora a brincadeira do
18; e pessoas de gravata lavada me disseram: “Quem salvou a Vila de um saque,
foi o Coronel Mesquita, que merece os maiores elogios por sua presença de espírito.”
Dos soldados varados, um tinha morrido, os mais parece não terem perigo. Os Patriotas
ralhavam muito do Coronel a quem chamavam déspota: o homem, se se deixa
assassinar, brilha; o Major passava a Comandante, e fazia-lhe as honras funerárias!!
De Guimarães me dirigi às Caldas de Vizela, e chegando à Madalena, meia légua
de distância, ouvi gritar — Aqui d'El-Rei ladrões — era um marchante que tinha
sido capitalizado!! Então, com o credo na boca, esperando a mesma gracinha, fui
continuando, até que cheguei à Lameira das Caldas sem maior incómodo além do
susto, que ninguém mo tira do corpo. Tal foi, Mestre, a minha digressão: por
toda a parte por onde andei, não ouvi senão ralhar do Governo! não há segurança
pessoal, rouba-se e mata-se sem cerimónia! As Autoridades electivas não fazem
senão esfolar o povo, que não pode com tanto tributo por falta de meios: assim
vai ele levantando as ventas, como em Braga, Vieira, e Ribeira de Soás. Por
toda parte foram borrados os editais dos dez por cento. Esta Lei desacreditou
os Patriotas, e tem dado lugar a cenas tristes: na Póvoa de Lanhoso, quando ela
se afixou no dia 4, uma mulher gritou em alta voz — Viva o Sr. D. Miguel!!! —
mas, que admira?, a maior parte dos empregados ou são Miguelistas, ou Setembristas
desmoralizados, que tratam os negócios públicos como carta de jogar. É verdade
que o Estado não pode subsistir sem que o povo concorra para as suas despesas;
mas também é verdade que o Governo deve habilitar o povo a ganhar para poder pagar,
e isto é o que se não verifica. Quando o povo vive na miséria, o governo, não pode
deixar de ser miserável. Tenha saúde até à primeira.
KIKIRIKI JÚNIOR,
Servus
Servorum Dei.
in O Ecco, Jornal crítico, literário e político,
n.º 290, de 4 de Agosto de 1838, pp. 4764-4767 (transcrição de texto publicado
no Periódico dos Pobres no Porto, N.° 174)
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