História trágica dum cevado, por Alfredo Guimarães

Fotografia de António Carrapato (Público)
Ainda jovem, Alfredo Guimarães publicou em jornais e revistas diversos textos com intenções literárias em que tratava, as mais das vezes, de questões do quotidiano e das tradições populares que ainda sobrevivam no início do século XX. Assim eram as Cartas ao Vento que publicou no jornal republicano Alvorada, de Guimarães. No texto que agora se publica, conta-se a história triste das últimas horas de um porco que veio da aldeia para ser vendido no Campo da Feira e acabar sangrado na casa de uma burguesa que ia à feira semanal envergando uma toilete singular, de pompa.

Cartas ao vento

HISTÓRIA TRÁGICA DUM CEVADO

(EXCERTO)

Hoje, ao fitar da janela o quintal do meu vizinho, veio-me à lembrança a caricatura em barro de Machado de Castro, que repetidas vezes tenho visto, em Lisboa, no Museu de Arte Antiga, e que reproduz, dos usos de aqui há dois séculos, uma cena flagrante da matança do porco entre saloios.
Com efeito, levantada cedo e dando bem de vistas à vizinhança, já a mulher do meu vizinho saiu hoje, acompanhada da serva, com uma toilete singular, de pompa, para um dia de feira semanal, e aliás tão trabalhoso, da cidade.
Dona Clara — que assim se chama a idosa e virtuosa senhora — cobrindo a sua mantilha de burguesa e suspendendo da garganta, no fichú, o seu longo e económico cordão de doméstica, meteu no bolso uma saca de linho pesada de coroas e pondo, com o punho fechado, a sombrinha de seda sobre o ventre deformado de antiga criadeira, lá rodou, oito e três quartos, com a capa preta e redonda da sua classe social, a caminho, ao Cano, da feira dos porcos.
Ao abrir deste dia assoalhado — que ora morre num crepúsculo de lacas acesas e distantes — prestes se tangeram pelas estradas dos arredores os cevados malhados de cinzento, com que a feira local, num parco comércio de camponeses, alegremente se encheu, e mais do que encheu, consolou.
A faladeira esposa do meu circunspecto vizinho — pessoa, em verdade, duma diferente e mais activa índole que o nobre e grave homem que passeia os seus dias paredes meias comigo arrastando os chinelos de ourelo e compondo os óculos sob a pala dura do seu bonnet de seda—tendo protestado, pelo caminho, à criada, comprar cevado a menos de libra a arroba, entrou no campo da feira na atitude de quem, contando tranquilamente com os recursos próprios dos olhos e da língua, conseguiria com absoluta certeza a realização do seu, digamos agora, ideal suíno.
Em redor das carvalhas secas da feira, e presos com uma corda, pelas pernas, aos troncos encascados das mesmas, espalhavam-se prodigamente os porcos conduzidos por camponeses, através caminhos do inferno, ao aviso carinhoso duma varinha de oliveira.
Dona Clara — que não fez o curso de veterinária devido, cremos bem, à ainda evidente repugnância feminista pela anatomia tantas vezes equívoca dos irracionais domésticos — a cada cevado sobre cuja simpática corpulência os seus olhos atractivamente incidiam, não se limitava ao aperto, aliás rolante, das ancas ásperas dos bichos, mas levava a exigência ou, melhor, o apuro dos seus cuidados de dona da casa ao extremo de baldear as mãos entre as pernas dos masculinos cerdados, no receio tão provinciano, e certamente nacionalíssimo, de comprar do produto honrado da venda dos seus cereais porco doente, e alimentado a modas frias, que lhe saísse chaveiro.
Às dez em ponto, batidas no relógio da Colegiada, quando já se haviam suspendido as missas e o velho sacristão, porque era dia de Senhor-Exposto, passeava em frente, fazendo caretas ao sol, de capa cor dos pinhões e carapuça
Erecta de algodão, em cartucho, Dona Clara, acompanhada da serva, atravessou orgulhosamente o largo, de olhos postos nas varandas, à espera de quem lhe gabasse a compra, que deveria sair, na melhor das hipóteses, a moeda a arroba, mais vintém, menos vintém.
Entretanto, o meu vizinho, vestindo um paletó que destino, económica e decentemente, A cava e à rega, preparava no quintal, de converso com o hortelão do lado, os apetrechos indispensáveis ao acto fúnebre.
Grave, sempre duma concisão cheia de disciplino e certeza, arrecadou ele próprio, a um por um, os molhos de lenha, bem enfaixados, da última vendedura dos estrumes.
Com uma pedra, batendo pancadas tão metódicas e lentas como se a sua mão se movesse preso à pêndula de um relógio, o velho asseado e discreto, fitando de ora em vez o olho da sachola, conseguiu cravar-lhe, com a firmeza de um monumento, uma cunha nova, talhada em castanho com a machada dos canhotos.
Em seguida, tirando o longo casaco e mostrando à curiosidade a firmeza dos suspensórios de correia cruzados sobre a alvura farta da camisa engomada que todos os dias, invariavelmente, preferiu e usou, o meu vizinho cuspiu silenciosamente nas palmas das mãos e começou cavando aquilo que deveria ser o inferno do seu suíno e paraíso do seu estômago.
Concordemos que se não nasce, impunemente, porco de alma ou de nome.
Pouco antes que a consorte surgisse, a Bragança, velha sardinheira da terra, cuja figura anã e áspera nos recorda a Maria Parda, a dos prantos bêbados, de Gil Vicente, passou clamando sardinhas a seis, de cabeça, que o grave homem, de olhar interrogativo, adquiriu à portada, sobre uma folha de couve, para o jantar, dizia, dos “matadores”.
Marcava o relógio de cuco, em cima, na varanda alpendrada, dez e vinte — que precisão a minha! — quando se começaram a ouvir, terríveis à entrada do prédio, lá fora, os primeiros gritos do suíno teimoso, que tresjurava não ser aquela, onde o queriam meter, a porta do seu senhorio campónio, que ainda pela madrugada, e perfeitamente à vontade, havia saído.
As mãos estouvadas da serva, porém, firmando-se resolutamente nas orelhas do cevado, juraram em si ter forças capazes de arrastar, sem meias medidas, o animal, aliás bem arrazoado nas suas intenções, ao curral onde teria, desde logo, de ficar de oratório.
Façamos agora o seu notável retrato.
Era um animal preto, cumprido e enxuto, com umas orelhas de asa, assaz discretas, vedando-lhe o segredo orgulhoso dos olhos raiados de sangue.
Uma vez internado no curral, aninhou-se, melancólico, em rememorações várias, insistindo em não fitar, sequer, a face céptica dos seus algozes.
Não falava — pensava. O seu espírito abria-se em doloroso diálogo com a visão da morte, estranho ao clamor sombrio das gulas humanas que o cercavam. Queremos crer que uma saudação profunda, e sinceramente envolta em lágrimas ardentes, era todo o seu louvor derradeiro à vida de j que ia apartar-se. Em redor do seu coração — compreendia-o, sugestionado — vagueava já um forte perfume de cominhos, cebola e alho. Maldisse, então, a impiedade e a baixeza carnívora dos homens. Vingá-lo-ia, mais tarde, a trombeta clamante de Jeová no Juízo Final. Todos então seriam igualmente queimados. Realizar-se-ia o seu sonho de vingança. Vida, ó Vida, porque o deixas?!...  Couves da sua aldeia, porque não vínheis em meu socorro?!... Lamentou-se, chorou e adormeceu!...
Na cozinha, aberta no alto do prédio para o quintal comprido com limoeiros e couve galego, Dona Clara e a criada apressavam o jantar, na cozinha de ferro; e já ao lado, sobre a laje do lar, sobre lavaduras infernais, aquecia num caldeirão negro, de ferro, a água que serviria para lavar o cadáver, cozer o sarrabulho e limpar as facas agudas (temperadas em Guimarães, no Miradouro), com que trabalhariam cruelmente os assassinos.
A roda do fumeiro, bem empandeirada sobre a lareira, provera-a o meu vizinho, de véspera, com o luxo de enleia nova. Ao lado, cheios de vento, enroscavam-se já, prontas para a enchedura, alguns metros de tripa de vaca. Sobre o armário havia cartuchos apertados de pimentos e cominhos, réstias mas de alhos galegos, um cabo comprido de cebolas novas, para picar; e mais adiante, sobre um banco longo, de pinho, um alguidar vermelho de Barcelos esperava a hora de ser estreado ao serviço da imolação negreganda.
Dona Clara, lidando e declamando ordens, revolvia-se na cozinha, vermelha de calor.
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Alfredo Guimarães

Alvorada, Guimarães, 22 de Janeiro de 1911

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