Sabonete República (fotografia colhida no Almanaque Republicano). |
Aqui há uns anos, deu muito que falar a afirmação de Emídio Rangel
de que uma televisão vende tudo — tanto um sabonete, como um Presidente da
República. Uns vinte e cinco séculos antes, Confúcio terá dito que uma imagem vale mais que mil palavras.
Um dia destes, numa visita de estudo, constatei uma alteração radical na razão
de ter alunos que, sistematicamente, ficavam para trás. Há algum tempo,
muito menos do que o que pode parecer, os alunos ficavam para trás a tirar
fotografias àquilo que lhes tinha sido mostrado e explicado. Agora, atrasam-se
porque perdem tempo a tirar fotografias a si próprios. Nunca como nos dias de
hoje, em que todos trazemos no bolso uma máquina fotográfica, o poder da imagem
foi tão avassalador. Passámos (em definitivo?) de uma cultura da palavra para
uma cultura da imagem. Quanto a isto, não me parece que haja muito a fazer: é
para onde o vento sopra. No entanto, impõe-se que o império da imagem não nos
faça perder o pé em relação ao que é importante. É que, para além das imagens,
ainda deve haver ideias que valham a pena ser discutidas.
Vem isto a propósito de algumas
imagens que, nestas vésperas de campanha eleitoral, tenho visto por aí e que,
olhadas com atenção, desafiam o bom gosto, atropelam o bom senso e arrasam os
bons costumes. Dou dois exemplos.
O primeiro é uma imagem que
encontrei na net. Mostra os cidadãos que foram medalhados pelo Município de
Guimarães no último 24 de Junho. Os agraciados foram nove cidadãos cujos
méritos foram reconhecidos, por unanimidade, pelos eleitos da Câmara de
Guimarães. Porém, a imagem tem dez fotografias e está dividida a meio: a metade
da direita está preenchida pelas fotografias dos medalhados; a outra metade é ocupada
pela décima fotografia, com tamanho igual à soma de todas as outras, e nela
sorri o actual Presidente da Câmara. Por baixo desta fotografia, lê-se: “Medalhados
– 24 de Junho”. Esta montagem resulta de uma intervenção aplicada, para fins de
simples propaganda política, sobre uma outra imagem, da Câmara Municipal de Guimarães,
em que o lado direito era ocupado pela cruz que este ano foi usada no cartaz
das comemorações da Batalha de S. Mamede. Não tenho dúvidas de que o Presidente
da Câmara não se revê neste tipo de aproveitamentos, mas a verdade é que, sendo
manifestamente abusivos, resultam da manipulação de documentos municipais
para fins partidários e usam as imagens de cidadãos distintos para fins de promoção de
uma candidatura eleitoral, que naturalmente não autorizaram.
E, neste caso, pode induzir uma de duas ideias,
ambas falsas: ou que o Presidente da Câmara também foi medalhado, porventura
com uma condecoração mais importante do que a foi entregue aos restantes nove;
ou que as medalhas foram concedidas por decisão pessoal do Presidente da
Câmara.
Será difícil de perceber que este
tipo de aproveitamentos desacreditam as condecorações e desrespeitam os
condecorados?
À esquerda, documento original, à direita versão manipulada que circula na net. |
A segunda fotografia que me
despertou atenção vi-a na capa da última edição da revista cor-de-rosa cá da
terra, a Bigger Magazine, e mostra um grupo de 22 crianças, quase todas, se não
todas, perfeitamente identificáveis, com o Presidente da Câmara no meio delas. Também
encontrei esta imagem na internet, mas não a reproduzirei aqui por razões
facilmente compreensíveis (uma delas é que a lei me impede de o fazer). O grupo,
ao que se percebe, é constituído por crianças praticantes de ginástica, com
excepção do autarca, que até pode praticar aquela modalidade desportiva, mas já há muito deixou de
ser criança, não se entendendo bem qual possa ser a pertinência da sua presença
dissonante em grupo tão homogéneo, a não ser passar a sua imagem, que é algo que,
manifestamente, não lhe faz nenhuma falta.
Nos tempos que correm, com os meios
de publicação que já estão ao dispor de qualquer um, este é um assunto que
tem gerado ampla discussão, não faltando doutrina sobre os perigos que podem
resultar da replicação de imagens de crianças, nomeadamente na internet e nas
redes sociais. Os especialistas têm alertado para o perigo acrescido de
publicar fotografias de menores, especialmente quando incorporam informações
que possam permitir a sua localização (por exemplo, a identificação da escola
que frequentam). Recentemente, uma deliberação da Comissão Nacional de
Protecção de Dados, proibiu as escolas de publicarem na internet fotografias
dos seus alunos “ainda que para o efeito exista consentimento dos pais ou
encarregados de educação”. O que diz a CNPD não se aplica apenas às escolas, mas
a todos os estabelecimentos frequentados por crianças, como será o caso da
Academia de Ginástica de Guimarães. Mesmo acreditando que tenham sido cumpridas
todas as regras para a publicação daquela fotografia — que mandam,
nomeadamente, que tenham sido colhidas, previamente e por escrito, as autorizações
de todos os pais das crianças fotografadas, em que estes consentissem
expressamente (1) que os seus filhos fossem fotografados e que (2) a fotografia
fosse publicada na revista e (3) na internet —, partilho da opinião dos que, em
relação a situações semelhantes, defendem que mandaria o bom senso que a revista
se tivesse abstido de a publicar e de a partilhar na net.
O admirável mundo novo em que vivemos apetrechou-nos com ferramentas que
nos permitem fazer aquilo que ainda há pouco nem sequer imaginávamos. Trazem
manuais de utilização, mas não os códigos de conduta que tanta falta nos fazem.
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