O jovem José Leite de Vasconcelos e o Castelo (fotomontagem) |
Em 1879, o
jovem José Leite de Vasconcelos (1858-1941) esteve em Guimarães, a convite do
Conde de Margaride. Era, à altura, um estudante que dava os primeiros passos
nas coisas da etnografia e da arqueologia. Data desses dias o início das suas
relações com o arqueólogo Francisco Martins Sarmento (1833-1899). Em 1933, aquando do centenário do nascimento de
Sarmento, Vasconcelos registou as suas memórias do primeiro encontro com
Sarmento:
As minhas relações com Martins Sarmento datam dos fins de 1879. Foi o meu prezado amigo, e seu primo, o snr. conde de Margaride quem me apresentou a ele, por ocasião de umas férias escolares que eu passava em Guimarães. A primeira vez que lhe falei, estava Martins Sarmento à banca, à noite, a trabalhar na primeira edição do seu estudo da Ora Marítima de Avieno. A mim prendeu-me imediatamente o modo lhano como me recebeu, tendo ele então já firmados os seus créditos de erudito, e sendo eu nas letras mero principiante. Recordo-me que logo nessa noite falámos muito. Depois disso não me faltou ensejo de estar com ele, porquanto, durante a época da minha formatura no Porto, eu ia a Guimarães frequentemente nas férias. Com Sarmento realizei mesmo algumas excursões arqueológicas, pelos arredores da sua cidade natal, à Citânia de Briteiros, a Soajo. Conquanto eu a esse tempo andasse na febre da colheita das tradições populares portuguesas, e no começo dos meus estudos filológicos, já sentia bastante inclinação para a arqueologia, à qual, por dever dos meus cargos oficiais, e para a execução do plano dos meus trabalhos, tive posteriormente também de consagrar-me: o contacto com Martins Sarmento não afrouxou, de certo, essa inclinação!
Naquelas férias do Verão de 1879, José leite de Vasconcelos escreveu e publicou no jornal
vimaranense Religião e Pátria um
poema que dedicou ao seu anfitrião, o Conde de Margaride, em que fala do
Castelo de Guimarães. Aqui fica.
O Castelo de Guimarães
(Ao Il.mo.
e Ex.mo sr. Conde de Margaride)
Que foste tu,
e que és, pobre castelo em ruínas?
Dantes eras o
rei destas verdes campinas;
Desses velhos
torreões e partidas ameias,
Hoje cobertas
de hera, hoje de opróbrios cheias,
Ostentaram
outrora os seus brios guerreiros
Junto do
condoe Henrique, os valentes besteiros;
Aí campeou
também, impávido, brilhante
Como um sol
alumiando esse tempo distante
Como nuvem de
luz, nobre escudo real:
E as
trombetas da guerra, em hino triunfal
Levantaram
febris este heróico pregão:
“—Combate aos infiéis! Sangue! Destruição!”
E logo, como
um mar colérico, endiabrado,
Vinham de
toda a parte os servos do condado,
E em volta os
barões poderosos, cruéis,
Marchavam por
aí, de encontro aos infiéis!
E tu, sereno
e rude, atlético, impassível,
Assistias
então a uma peleja horrível,
Vendo de um
lado e de outro as setas pelo ar,
As lanças dos
peões além relampejar,
E o cavaleiro erguendo a espada para os
céus…
Que foste tu
e que és? Quais são os louros teus?
Das janelas
onde hoje a hera seca se enleia,
Como uma
secular, fortíssima cadeia,
Olharam muita
vez para os largos horizontes,
Coroados de
azul, recortados de montes,
E para a
solidão das várzeas afastadas,
Pelo claro
luar das noites consteladas,
Que é como
que um sorriso ideal da Natureza,
—Olharam
muita vez Trastâmara e Teresa,
Nessa união e
amor das almas primitivas,
Límpidas como
a lua e como a chama vivas.
Daí também
outrora Afonso sonharia,
Seus sonhos,
onde presa a alma lhe fugia
Por terras de
infiéis, por castelos de Espanha,
A correr, a
correr após de glória estranha...
Daí ele
compôs a epopeia sagrada
Da
Independência, — e o eco eterno dessa toada
Longínqua,
sim, mas bela, escuta-se ainda agora
Em nossos
corações, qual música sonora.
Daí lançou-se
a um reino uma base feliz,
E acendeu-se
o farol, guia deste país
Na conquista
do mar buscando um reino novo,
E em tudo
isso que faz que seja grande um povo!
Quantas
vezes, ó noite, o teu manto lutuoso
Não
surpreendeu o sonho a este rei glorioso?
Castelo! tu
hoje és como um espectro, erguido
Nos abismos
do tempo! O fantasma dorido!
Depósito fiel
das lendas medievais,
Da fama dos barões, das vitórias feudais!
Coluna que se
esvai ao vil sopro dos anos!
Baluarte
talvez de sombrios tiranos!
Masmorra onde
mais tarde a virtude penou
Sob os pés de
um algoz!
Quem foi que
te apagou?
Quem dessas
triunfais ameias há riscado
O espírito
que um dia as havia animado?
Que vã Filosofia ocultou tua glória,
Ó castelo
esquecido e só vivo na História?
Ah! a Ideia é
mais dura e firme que o granito!
Mais viril
que o obelisco, onde o teu nome escrito
Campearia
altivo, em sublime ovação!
Nada pode
fugir à lei da Evolução.
Por isso a
hera te envolve e uma nuvem pesada
Paira por
sobre ti, muralha abandonada;
E tu és boje
como um velho sem ventura,
Que tem um
passo no ar e outro na sepultura!
Guimarães, 1
de Setembro de 1879,
J. Leite de
Vasconcelos.
in Religião e Pátria, 13 de Setembro de 1879
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