Santa Rosa do Lima (imagem da fachada do convento de Guimarães) |
Esta
é a história de uma mulher de Guimarães que ousou contrariar o seu destino. Os que conheceram Emília e contaram a sua história, chamaram-lhe heroína. Aconteceu no meio fechado, apegado a velhas
tradições, conservador e beato da vila
que Raul Brandão, que conheceu os protagonistas desta história, descreveu magistralmente
na Farsa ou no Húmus. Naquele tempo, ainda que se prolongaria por muitas décadas, a
mulher estava condenada a uma condição de menoridade perpétua. Toda a sua vida
seria passada na dependência de um homem. Primeiro o pai, depois o marido. Na
ausência destes, um irmão, um tio, um tutor. Todas as decisões determinantes
para as suas vidas eram tomadas por homens. E, de todas as decisões que determinavam
o destino de uma mulher, a do casamento era uma das mais relevantes. Quem escolhia
o homem com quem uma rapariga iria partilhar a sua vida não eram as inclinações
do seu coração. Prevaleciam os sacrossantos interesses das famílias. E, nesta matéria, o melhor até
era ser pobre, ter nascido numa família sem nada de seu. Nessas, o casamento por amor
encontrava menos obstáculos.
Emília
nasceu em Fareja, freguesia do actual concelho de Fafe, no dia 22 de Novembro
de 1833. Era o segundo parto de Albina Rosa de Carvalho (ou de Carvalhais),
mulher de António José Ribeiro Gomes de Abreu
(que tem muito que contar, já que a sua origem e a sua história de vida são um
verdadeiro tratado de história social do Minho novecentista). Pelo que se
percebe, o seu irmão mais velho, Manuel, nascido um ano antes, terá morrido pouco
depois do parto. Desta segunda vez, será a mãe que, sobreviverá pouco tempo ao parto. Emília cresceu como filha única e órfã de mãe. O pai, demasiado cedo viúvo, irá confrontar-se com as complicações da educação
de uma filha para quem a figura materna estará para sempre ausente.
A
primeira infância de Emília terá sido passada em Fareja e, aparentemente, também
em Mesão Frio. Depois, veio viver para Guimarães, na casa da família que ficava
na Torre Velha, que se encostava à velha muralha da vila. Em algum momento, ainda muito jovem,
conheceu Sebastião, três anos mais velho, que morava na rua Nova das Oliveiras,
que hoje conhecemos como a rua de Camões. Perdeu-se de amores por ele e foi correspondida.
Fizeram juras eternas e prometeram-se, um ao outro.
No
entanto, o pai de Emília, que não tinha Sebastião em grande apreço, tinha traçado
outros planos para a sua filha. Quando a moça chegou à idade a
casadoira, o progenitor esmerou-se na procura de pretendentes à altura. Mas foi em vão. Emília
a todos recusou. Apenas casaria com Sebastião.
Quando
Emília se aproxima dos 20 anos, pai e filha desentendem-se. Emília persiste na
sua obstinação, que o pai não consegue de dobrar: apenas aceita casar com Sebastião.
O pai não o permite.
A
decisão de Emília de só casar com Sebastião era irrevogável. A rejeição do pai
também o era. Com o extremar do conflito, Emília recolheu-se no convento de Guimarães
que aplicava o regime de clausura mais inflexível, Santa Rosa do Lima, onde viviam as
últimas freiras domínicas. Note-se que o recolhimento de Emília no convento não
tinha como propósito a desistência da vida secular, para assumir a vida
monástica, para a qual não sentia vocação. Aliás, à luz da lei então vigente,
tal nem sequer seria possível, mesmo que esse fosse o seu desejo: a extinção
das ordens religiosas, em 1834, não tendo encerrado de imediato os conventos femininos,
tinha permitido que as freiras continuassem a viver neles e a extinção definitiva
de cada recolhimento apenas seria declarada assim que fosse declarada a morte da
última freira. No entanto, não haveria a ordenação de novas freiras, já que os
noviciados foram extintos.
Emília
recolheu-se no convento para lutar pelo seu direito à felicidade. E lutar
significou resistir à determinação do pai e reivindicar judicialmente o seu
direito a decidir o seu destino, enfrentando todas resistências do pai e as
tentativas de persuasão das freiras, que agiam na convicção de que era da ordem
natural das coisas uma filha cumprir com seu dever de obediência a seu pai. Foi
interposto um processo civil para o suprimento do consentimento paterno, que se
arrastou por seis longos anos, em que Emília passou por duras provações.
Adoeceu gravemente, caiu-lhe o cabelo, envelheceu precocemente. Mas, mesmo
quando estava mais exaurida e debilitada, nunca desistiu de lutar.
Cá
fora, Sebastião esperava por ela.
Até
que, em finais de 1858, com 25 anos acabados de completar, obteve a decisão
judicial que lhe permitiu assumir a maioridade e o seu destino. Era livre para
decidir. E decidiu.
Quando,
no início daquele frio Janeiro de 1859, Emília saiu de Santa Rosa do Lima, para
percorrer o curto trajecto que a separava da casa onde morava Sebastião, na rua
Nova das Oliveiras, já era uma mulher casada e o homem por quem tanto lutara e
sofrera era aquele com quem iria partilhar a vida e os filhos, até ao último dos
seus dias.
Emília
é uma mulher que resistiu e venceu o seu destino.
~*~
O
casamento de Emília e Sebastião, por ser incomum, mereceu uma notícia no jornal
Tesoura de Guimarães que saiu no dia 11 de Janeiro de 1859:
Casamento não vulgar
No
dia 8, entre as trevas e a luz matutina, ligaram-se pelo sacramento do matrimónio,
na igreja paroquial de S. Sebastião, o ilmo. Snr. Sebastião Augusto de
Magalhães Brandão, e a exma. snra. D. Emília Augusta Ribeiro Gomes de Abreu. É
este um casamento, que pudera estar verificado nos fins do ano de 1852, se o
pai da ilustre dama o ilmo. snr. António José Ribeiro Gomes de Abreu, menos
cuidadoso da felicidade de sua filha, conviesse em a entregar desde logo ao
objecto da sua primeira e juvenil inclinação.
Dentro
do convento das religiosas domínicas, e no meio daquelas bondosas senhoras,
passou a nossa heroína seis anos, menos 5 ou 6 dias, sem querer deixar aquela
habitação, nem mesmo para tratar da sua danificada saúde, não obstante os
conselhos de seu amante pai, até que, completou a idade do poder avaliar, à
vista da lei, o que lhe era conveniente, ou prejudicial.
Consultada
a sua vontade, e o seu destino, encontraram que a snra. D. Emília Augusta
Ribeiro Gomes de Abreu estava possuída, no fim do ano de 1858, dos mesmos
sentimentos que tinha nos fins do anuo de 1852; e, no dia 8 do corrente mês,
era a filha querida do nosso amigo o ilmo. snr. António José Ribeiro Gomes de
Abreu, e a esposa idolatrada do nosso amigo o ilmo. snr. Sebastião Brandão!
Esta
firmeza de carácter dá honra ao sexo feminino, e glória ao pai exemplar, que
soube imprimir no animo de sua filha tão nobres e heróicos sentimentos.
[CONTINUA]
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