Quem
me ensinou a palavra dendrólatra (o que tem adoração pelas árvores) foi um dos
mais notáveis escritores contemporâneos de língua portuguesa, Rubem Fonseca.
Numa das crónicas que compilou no volume “O Romance Morreu”, afirma-se “dendrólatra
incorrigível” (o texto tem o título “Desventuras
de um dendrólatra”, e pode ser lido seguindo a ligação). Já a palavra arboricida
(o que mata árvores), aprendia-a ao folhear velhos jornais vimaranenses, onde eram
recorrentes as notícias de arboricídios, perpetrados, umas vezes, por mão
incógnita, outras pela Câmara. Nos últimos tempos, tem sido dada notícia de
mais um arborícidio que se planeia em Guimarães, fazendo desaparecer uma das últimas
manchas verdes situadas no interior de quarteirões edificados, que eram uma das
imagens de marca de Guimarães, como se depreende, por exemplo, da planta mais
antiga da cidade que conhecemos, que é do século XVI. Fica no miolo entre as
ruas de Camões, da Caldeiroa e da Liberdade e a viela que liga as duas últimas,
onde o betão se prepara para avançar sobre o arvoredo, para construir um parque
de estacionamento king size, cuja
necessidade custa a entender numa cidade onde, como já vimos, a oferta de
aparcamento automóvel satisfaz a procura e ainda sobra.
(E, entretanto, lá vamos todos, unidos e de mãos dadas, cantando hinos, rumo à Cidade Verde Europeia.)
Árvores do quarteirão de Camões-Caldeiroa, no dia de hoje. |
No
passado, os vimaranenses não costumavam ficar calados perante a ameaça ou a
consumação de arboricídios, como o demonstra o texto que aqui partilho, que João
de Meira escreveu e publicou no jornal Independente em 1905.
Destruição de Arvoredo
Milhares
e milhares de anos seguidos acreditou a humanidade que em cada árvore existia
uma alma.
Alma
vaga, indefinida, nebulosa, alma de vegetal flutuando incerta entre a realidade
e o sonho na esbatida penumbra das sensações nascentes, mas alma que — como o
colosso de Memnon —sorria e cantava aos primeiros raios do sol, alma que gemia
e se lamentava aos golpes do machado e às rajadas do vento; alma forte que
chorava em gotas viscosas de resina no pinheiro, alma terna que vertia as
lágrimas correntes do látex na figueira bendita!
A
alma ardente de Adónis gritava numa araucária de Biblos, a alma doce de Átis
sussurrava numa amendoeira em flor.
Xerxes,
o grande persa, ornava de colares e pedrarias resplandecentes um plátano favorito;
nas florestas da Gália os druidas prosternavam-se ante o carvalho sagrado; e
ainda hoje, no deserto, junto de mar Cáspio, onde uma única árvore solitária se
encontra no transcurso de muitas léguas, o Tártaro que à sua sombra se acolhe não
segue sem lhe deixar suspenso dos ramos o tributo da sua gratidão, um pouco dos
seus alimentos, um farrapo de vestido e até, quando outros dons escasseiam, uma
mecha de cabelos.
O
Egípcio, conta a lenda, voltando a casa vergado sob o peso do trabalho e da
tirania do Faraó, tinha na árvore doméstica, no sicómoro ou na acácia, a
silenciosa confidente das suas mágoas e terrores.
Mas
na Europa, depois da Idade Média, a ideia singularmente falsa e soberanamente
orgulhosa de que só o homem sente e pensa foi-se lentamente infiltrando nas
consciências, que uma errada compreensão do mundo pervertera.
Para
todo o sempre se perdeu o belo panteísmo de Francisco de Assis, que via em cada
ser — animal, árvore ou mesmo rocha bruta — um irmão, um filho da mesma
divindade que lhe dera vida.
O
homem começou erguendo contra a árvore uma ímpia mão destruidora. E nunca mais
abraçado com ela, como o índio, lhe pediu perdão do corte necessário e
imprescindível, antes entrou a derrubá-la sem precisão nem motivo, para dar que
fazer a lenhadores ociosos.
Aquele belo e antigo arvoredo que povoava o principal largo da povoação das Taipas, acaba de ser completamente destruído.
Carvalheiras
de grande porte, que levaram séculos a formar, e que durante a época de Verão
protegiam os banhistas contra os ardores do sol, no seu trânsito para o
estabelecimento balnear, foram barbaramente arrancadas.
Aqueles
ramos frondosos, ó Camilo Castelo Branco, que te deram sombra ao crânio
escandecido e paz ao coração inquieto, no momento mais doloroso da tua vida de
torturas, já não existem!
Estão
se desfazendo em cinza nalguma lareira sertaneja aquelas árvores ancestrais que
celebraste nas páginas imorredoiras das “Memórias de Cárcere”!
*
A
quem pertence a responsabilidade deste acto de incompreensível vandalismo?
À
Câmara ou somente ao vereador do pelouro?
Seja
quem for o responsável, não pode semelhante facto deixar de merecer a mais veemente
censura.
Destruir
árvores seculares, que davam ao local público, em que existiam, uma nota agradável
e pitoresca, e serviam de refrigério nos dias calmosos de Verão aos numerosos
forasteiros que ali acodem é mais que um disparate, é uma verdadeira selvajaria.
Que
crime negregado haviam cometido, que insuportável mal faziam as pobres
carvalhas a cuja frescura amiga era tão doce passear nas calmas estivais ?
Acaso
deixaram elas cair irreverentes bolotas sobre a cabeça descoberta de algum
edil?
Acaso
em toca escura de alguma delas se aninhava irrequieto enxame de besouros que
ferroasse o pescoço de algum camarista?
Acaso
nas suas raízes nodosas tropeçou e caiu desastradamente um membro do nosso
ilustre senado?
Acaso
impediam elas que algum indiscreto observador presenciasse o que se passava em
casa dos vizinhos do outro lado da alameda.
Que
crime, que mal faziam elas?
Diga-o
a Câmara e enquanto o não disser ninguém poderá deixar ide reprovar semelhante
destruição.
O
mal está feito, e não é por isso possível voltar atrás.
Mas
ao menos tenha a Câmara mais cuidado de hoje para o futuro, não vamos acordar
amanhã com o arvoredo dos nossos largos e ruas arrancado à semelhança do das
Taipas.
Depois
do que a Câmara progressista de 1899 a 1902 praticou nas árvores do jardim do Toural,
tudo se pode esperar, neste sentido, de outra Câmara progressista.
Uma
árvore é uma vida. E uma velha árvore merece o respeito que devemos a um homem
velho.
O
crime que a Câmara cometeu cortando as árvores da alameda das Taipas ficará
para sempre assinalando a sua gerência como um atentado contra o bom senso e
contra o bom gosto, que não pode ter absolvição ou desculpa.
Independente, Guimarães, 26 de Março de 1905
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