Passam hoje dez anos sobre um anúncio que iria mudar a
história de Guimarães e a sua relação com o Mundo. O dia 7 de Outubro de 2006 é
uma data que deveria estar inscrita a tinta indelével na página principal das
efemérides vimaranenses. Se houvesse memória para além do tempo presente, não
nos tínhamos esquecido de assinalar a passagem da primeira década sobre a data
em que a Ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, anunciou em Guimarães que esta
cidade iria ser Capital Europeia da Cultura no ano de 2012.
Naquele sábado, realizava-se em Guimarães uma reunião
informal do Conselho de Ministros, tendo na agenda a preparação da presidência
portuguesa do Conselho Europeu, que iria acontecer no segundo semestre de 2007.
Estava previsto que a conferência de imprensa que se seguiria a essa reunião
seria aproveitada para fazer a apresentação pública de um projecto relevante
para a Sociedade Martins Sarmento, que estava a ser preparado havia alguns
meses. Do Ministério, disseram-me para não assumir compromissos para aquele
dia, para poder estar presente na conferência de imprensa. Um par de dias antes
da reunião, foi-me dito que o anúncio poderia não acontecer, porque o Governo
estava a ponderar fazer um outro anúncio. Na véspera, chegou a confirmação de que
a apresentação do projecto referente SMS já não iria acontecer, devendo ser
agendado para melhor momento.
Longe de imaginar o que se preparava, fiquei curioso para
saber o que estaria para vir.
A nova chegou-me logo ao princípio da tarde daquele sábado:
a ministra acabava de anunciar que Guimarães iria ser indicada pelo Governo
para ser Capital Europeia da Cultura em 2012. A vereadora da Cultura, Francisca
Abreu, tinha tido uma reacção de genuína surpresa, com emoção até às lágrimas.
O segredo estivera muito bem guardado e, se não erro, em Guimarães, apenas
seria do conhecimento do presidente da Câmara, António Magalhães, e do deputado
Miguel Laranjeiro.
Recebi a notícia maravilhado (estava muito longe de imaginar
que a novidade esperada seria aquela) e divertido (porque havia uma
curiosa ironia em tal anúncio, fazendo lembrar os desfechos judiciosos das
velhas histórias de proveito e exemplo). É que a discussão acerca de uma
candidatura a Capital Europeia da Cultura em 2012 já tinha a sua história.
Alguns meses antes, o reitor da Universidade do Minho,
António Guimarães Rodrigues, tinha apresentado em reunião do Conselho Cultural
a sugestão de se mobilizar uma candidatura minhota à Capital Europeia da
Cultura, em 2012, ano em que a distinção caberia a uma cidade portuguesa. A
ideia seria candidatar, não uma cidade, mas a região do Minho que se distribuía
pelo quadrilátero Braga-Guimarães-Famalicão-Barcelos. Dos contactos exploratórios
já estabelecidos, percebia-se que havia a possibilidade de a resposta de Braga ser
uma negativa, o que inviabilizaria a iniciativa. O Presidente daquele órgão da
Universidade, o Professor Lúcio Craveiro da Silva, incumbiu-se da missão de
levar a ideia ao Presidente da Câmara de Braga, Mesquita Machado. Que disse que
sim. Com a adesão das outras câmaras assegurada, estava aberto o caminho para
uma candidatura do Minho a região Europeia da Cultura. Porém, dias depois, a
Câmara de Braga daria o dito por não dito, afastando-se da candidatura
regional, em favor da apresentação de uma candidatura própria da cidade de
Braga. Morria, de morte prematura, uma ideia generosa que poderia ajudar a
cimentar uma identidade regional que quase não existe.
Seria uma cidade do Minho, e não a região, a ser designada
CEC em 2012. Mas não seria Braga, mas sim Guimarães, que nem sequer tinha
assumido a ambição de ser, tão cedo, Capital Europeia da Cultura. E era aí que
estava a ironia.
(Mas, mesmo depois do anúncio da Ministra da Cultura, os
responsáveis políticos de Braga não desistiram da sua ambição de alcandorar a
sua cidade a capital cultural da Europa, mas já não apenas por um ano, que isso
para eles era escasso contentamento: o seu limite era a eternidade. Poucos dias
após a indicação de Guimarães, apresentavam um plano municipal em que se
introduzia o conceito inovador de “capital permanente da cultura”, com que
Braga se dispunha a participar na “construção da nova identidade europeia, sem
perder a condição de cidade eterna e legenda da civilização ocidental”.)
Apesar de, até aí, Guimarães não ter equacionado a possibilidade de uma candidatura a CEC, o presidente António Magalhães logo notou que a cidade
estava preparada para tamanho empreendimento. Quando lhe apontaram as câmaras e
os microfones para perguntar que projectos é que Guimarães tinha para 2012,
logo demonstrou que projectos culturais era o que não faltava a Guimarães, exemplificando
com o projecto CampUrbis, que iria requalificar o bairro de Couros, com um
Centro de Arte Contemporânea associado ao nome de José de Guimarães, e com a
Casa da Memória, projectos que tinham sido concebidos no Campus de Azurém, no
âmbito da cooperação informal entre a Câmara Municipal de Guimarães e a Universidade
do Minho.
Foi então posto em marcha o processo da candidatura de
Guimarães a Capital Europeia da Cultura em 2012, cujo desfecho já se conhecia: a decisão que contava era a do Governo português, a quem
competia indicar a cidade portuguesa que iria assumir essa condição, e essa
decisão já estava tomada e anunciada. Passado um mês, a Ministra da Cultura de
Portugal apresentava o nome de Guimarães à União Europeia.
Por aqueles dias, as chamadas redes sociais ainda estavam
muito verdes, mas a blogosfera
vimaranense vivia tempos fervilhantes e muito interventivos. Mesmo quando
seguia pela via satírica, levava-se a sério e, mais importante ainda, era
levada a sério. Muitos de nós ainda recordarão que a maior discussão daqueles
dias andou à volta da escolha do nome de um “comissário” para a CEC. Traçou-se
um perfil: teria que ser alguém com projecção nacional e internacional e
inquestionável ligação a Guimarães. Aventaram-se muitos nomes, mas os mais
referidos foram os de Jorge Sampaio, José de Guimarães e… Paulinho Cascavel.
Foi criada um grupo de missão, com representação paritária
da Câmara Municipal de Guimarães e do Ministério da Cultura, que avançou para o
terreno, colhendo contributos de centenas de pessoas, ouvidas em dezenas de
reuniões. No início de 2008, já estava nas mãos da União Europeia o dossier
final da candidatura de Guimarães a Capital Europeia da Cultura em 2012.
Mas, aos dias iniciais quase frenéticos seguiu-se um tempo de quase paralisia, em que as nuvens ameaçadoras
da crise financeira global começaram a pairar sobre o projecto, refreando algumas
das expectativas mais entusiásticas. E os meses iam correndo, sem que se
encontrasse o tão procurado “comissário” para a CEC e sem que se definisse o
estatuto jurídico e o modelo de gestão da entidade que seria encarregada da
concepção e da execução do programa da CEC. Só no final de Agosto de 2009 é que
foi publicado o decreto que criava a Fundação Cidade de Guimarães. Um mês
antes, tinha sido apresentada publicamente a presidente indigitada do seu
Conselho de Administração, Cristina Azevedo, nome que suscitou alguma
perplexidade, estampada numa pergunta: — Quem é?
Quase ninguém sabia de onde tinha saído a personalidade que
iria encabeçar o projecto da Capital Europeia da Cultura. Mas algo já se sabia:
era que estava longe de corresponder ao perfil de que tanto se tinha falado.
Não tinha projecção nacional nem internacional e não tinha qualquer ligação
conhecida a Guimarães. E era quem a conhecia que dava mostras de maior espanto com
tal escolha. Era uma técnica da CCDRN, com fama de competente. Dizia-se que
tinha a mais-valia de dominar a complexidade dos dossiers das candidaturas a
fundos europeus, mas não se vislumbrava a dimensão do seu currículo cultural
que a recomendasse para tais funções. Muitos desconfiavam que a escolha não
tivesse sido ditada pela prudência, mas sim pelos insondáveis desígnios das
decisões que se tomam à luz difusa de corredores e dos gabinetes palacianos da
antiga capital do Império. Este é um mistério que alguém, um dia, esclarecerá.
O benefício da dúvida que lhe foi concedido durou pouco
tempo. Os que em Guimarães trabalhavam na área da cultura não tardaram mais do
uns dias a perceberam que tinha havido um incompreensível erro de casting. Manifestamente, a direcção
geral da CEC não era empreendimento para quem tinha como únicas competências
conhecidas as de se saber orientar pela estrutura labiríntica dos
processos da candidatura a fundos europeus, aptidões que não eram essenciais para
programar e organizar uma CEC, uma vez que não faltavam no mercado técnicos
suficientemente competentes para desempenhar tais tarefas. O que era preciso
era alguém com mundividência, densidade cultural, inteligência, golpe de asa e boa
dose de senso comum.
O equívoco podia parecer de fácil resolução. Mas não era. Os
estatutos da FCG eram um fato justo, feito à medida, concedendo ao Presidente
do CA poderes manifestamente excessivos e dificilmente escrutináveis, tornando-o
praticamente inamovível depois de provido no lugar. Incompreensivelmente, se não
acautelavam minimamente os direitos das partes interessadas no processo, a Câmara de
Guimarães e o Ministério da Cultura, blindavam criteriosamente a posição do Presidente
do Conselho de Administração. Na altura, dizia-se que aquela obra teria sido desencantada
pela pessoa que estava designada para o lugar, num escritório de advogados
lisboeta especializado em cobranças difíceis, com a autarquia vimaranense a
assumir uma única responsabilidade: a de liquidar a correspondente nota de
honorários. Até hoje, ainda custa a perceber como é que tamanha aberração obteve a aprovação do Ministério da Cultura, da Câmara e da Assembleia Municipal
de Guimarães. Outro mistério que algum dia se desvendará.
O que se seguiu foi o que todos sabemos, mais o que ainda
não sabemos, mas que um dia se contará. Uma sucessão de tiros no pé, uma absoluta incompreensão da
realidade local, uma estratégia de comunicação desastrosa. Uma auto-suficiência
teimosa, que persistia em ignorar os sinais de desencanto da cidade, dos
cidadãos, da Câmara Municipal e do Ministério da Cultura. A Capital Europeia da
Cultura de Guimarães parecia destinada ao naufrágio.
Mas não foi isso que aconteceu. Postos perante a eminência do malogro, os vimaranenses
assumiram a causa da Capital Europeia da Cultura e forçaram a nau a entrar na rota certa, vencendo
a tormenta e alcançando bom porto e terra firme.
E foi o que se viu: Guimarães levantou-se e andou.
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