O autor deste
blogue não se lembra de aqui ter publicado uma fotografia sua. Mas não resiste
a publicar esta, apanhado no meio de um mar de
gente.
Para onde olhava?
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Aquela quinta-feira começava como
costumavam começar, por aqueles dias, as quintas-feiras: num anfiteatro do Liceu de Guimarães, com
a cabeça suspensa nas nuvens, enquanto a professora se esforçava por ensinar os
fundamentos da física ou da química, que só não se pode dizer que saíssem à mesma
velocidade com que entravam, porque nem chegavam a entrar. A professora, já de
si apequenada, naquele dia parecia ainda mais pequena, de tão enterrada na
cadeira. Havia no ar qualquer coisa de diferente, que se percebia mais pelos silêncios
do que pelas palavras. Alguém comentou que alguém
dissera que alguém ouvira qualquer coisa, na rádio. Assim que pude esgueirar-me,
fui para casa, liguei o velho aparelho, grande como um armário, rodei o
botão de sintonizar e, por entre os ruídos espectrais e os assobios agudos da
Onda Curta, fui dar a uma estação onde o locutor falava de la situazione in
Portogallo. Era verdade, algo se passava neste rectângulo avarandado sobre o mar.
As horas que se seguiram, até à
madrugada do dia seguinte, não terão sido muito diferentes das que foram
passadas pela maioria das pessoas que viviam por esse país afora, onde a História, que
estava a acontecer essencialmente em Lisboa, só podia ser acompanhada à distância. Colado à
rádio, depois à televisão, saindo de casas só para ir comprar as edições especiais dos jornais que iam chegando com notícias da capital do Império.
No entanto, aquele dia, que tudo prometera, acabaria com um travo
de desilusão. O general do monóculo que se apropriara de uma revolução com a
qual pouco, ou nada, tinha a ver, lia uma proclamação ao país em que deixava aberta a porta da guerra em África.
Dia 26 de Abril de 1974. Os
estudantes do Liceu decidem que, nesse dia não haveria aulas. Porque
era tempo de celebração da liberdade, não reconheceriam nenhuma autoridade que
não fosse a da sua própria vontade. O vice-reitor de turno, homem que tinha
pouco afecto pelos estudantes, que lhe retribuíam a desafeição em dobrado, não
estava pelos ajustes. Tentou impor a sua autoridade, ignorando, talvez, que já não
tinha nenhuma. Mas não tardou muito a ficar ciente e teve que sair da frente,
para não ser levado no enxurro.
Compram-se cartolinas, improvisam-se cartazes, ensaiam-se vivas e palavras de ordem e forma-se a mais extraordinária das manifestações espontâneas a que me foi dado assistir até ao dia de hoje. Começou com os estudantes do Liceu, juntaram-se-lhes alunos das outras escolas e, quando chegou à Alameda, já era um mar de gente. E eu ia nele.
É verdade:
uma das primeiras manifestações que saíram às ruas de Portugal em saudação à revolução de Abril aconteceu em Guimarães e foi obra dos seus estudantes.
Ao final da tarde daquele dia em
que, de repente, aprendemos tudo o que nos quiseram esconder e que, afinal, já
sabíamos, nova manifestação, promovida pelos democratas do MDP, no Toural. Uma
multidão imensa escuta os discursos que, das varandas do Oriental, se sucedem e que
falam de liberdade, de democracia, dos presos políticos, que continuavam
presos, da guerra colonial, que não se via meio de acabar. No final, a intervenção mais ardente de todas as que se escutaram naquele dia. Era para ali que eu olhava.Terminava com uma
proclamação para o futuro:
“Estamos a caminho do socialismo.”
E eu que, da altura dos meus 15
anos acabados de fazer, não sabia o que era o socialismo, achei bem.
Aquele foi
o dia em que me tornei socialista. Devo-o a Santos Simões.
Por aqueles dias, em Portugal, éramos quase todos socialistas.
5 Comentários
Belíssima crónica!
A foto dos estudantes na Rua de Santo António foi tirada mesmo no dia 25 de Abril de 1974, e não a 26 como foi referido. Eu estou nessa foto, por isso tenho a certeza absoluta.
Esta foto foi tirada pelo saudoso Simão fotógrafo, na altura o correspondente em Guimarães do jornal O COMÉRCIO DO PORTO, e foi publicada neste mesmo jornal no dia 26 de Abril de 1974. Ainda tenha guardado um exemplar deste jornal.