Pregão de 1929, recitado por um "quintanista do Liceu Martins Sarmento" |
Este ano
a cena Nicolina andou um pouco mais tempestuosa do que o costume. Não é grande
novidade: acabadas as festas, regressa a bonança, e, como diria o meu amigo
Miguel Bastos, a tranquilidade e a fidelidade, até Novembro do ano que vem. A
febre nicolina é como as marés vivas de Agosto. Para o ano, há mais.
Entretanto,
vou percebendo que há quem que as Festas Nicolinas têm donos. Donos
do seu estudo, donos da sua tradição, donos, enfim, das festas. Até há os que
se julgam com a exclusividade de emitir ou de validar opiniões sobre a matéria.
Cá por mim, que não tenho dono, continuarei dizer o que penso. Enquanto que
aqueles que enchem o peito e proclamam “eu decido” não tiverem peito bastante
para decidirem mudar a Constituição da República, continuarei a dizer o que me
apetece dizer. Lamento muito desiludir suas excelências: vão ter que me
continuar a aturar. É a vida. Se não gostam do que digo, têm bom remédio: como,
mui sabiamente, dizia a minha avó, “ponham na beirinha”.
Este ano, quando
os motores das festas ainda estavam na fase do pré-aquecimento, fiz aqui uma
pergunta: De quem são
as Nicolinas? Pelo que vi, não falta quem
ache que são suas e de mais ninguém. Enganam-se: as nicolinas são de todos.
Este ano,
voltou a haver desentendimentos entre os velhos e os novos nicolinos. Nisso,
não há originalidade: essas divergências são (quase) tão antigas quanto as
festas. Ao que percebo, a inovação deste ano tem a ver com a ideia, alimentada
por alguns, de que as festas nicolinas pertencem a uma única escola.
Quanto a esse
assunto, antes de mais, começarei por reafirmar a minha profunda admiração
pelos jovens estudantes que, ano após ano, tomam a seu cargo a missão de
organizar as festas mais emblemáticas da cidade de Guimarães. Sobre este
assunto, julgo que basta o que já disse aqui, quando lavrei o meu Elogio da
Comissão das Nicolinas.
Nenhuma tradição
sobrevive se se deixar cristalizar na sua primitiva forma. Caso contrário, o
seu lugar passaria a ser o museu ou o arquivo histórico, não a realidade vivida
ano após ano.
As Festas
Nicolinas são um excelente exemplo do que se disse acima. As manifestações que
lhes deram origem aconteciam, no passado, em Guimarães como em muitos outros
lugares da Europa. Havia mesmo outras terras onde aquelas manifestações tinham
uma grandiosidade a que Guimarães não podia aspirar. Porém, as festas dos estudantes
de Guimarães são hoje um caso praticamente único no contexto das festividades
cíclicas europeias. Porquê? Porque se souberam adaptar a novas realidades
históricas e sociais. Porque não pararam no tempo: se o fizessem, é certo que o
tempo, que não pára, seguiria adiante, mas não as festas.
É por isso que
eu compreeendo os que dizem que “no meu tempo é que era”. Pois seria. Mas
nesses tempos, que variam consoante a idade de cada um dos que o dizem, também
não faltava quem dissesse que “no meu tempo é que era”. Se daqui a meio século
houver quem diga o mesmo, será certo que as Nicolinas continuam vivas.
Apesar de todas
as transformações que sofreram ao longo dos séculos de existência que já levam,
as nicolinas continuam a ser as nicolinas, e não outra coisa qualquer, porque
nunca cortaram o fio da memória que as vincula a uma tradição centenária e que
sempre ligou diferentes gerações.
Não sei o que
levou ao corte de relações, este ano, entre a comissão que representava
os estudantes “novos” e a direcção da associação que representa
os “velhos”. Admito que haja, de ambos os lados, diferentes razões. Agora, o
que me custa a admitir, é que os “novos” tenham decidido este ano não respeitar
a tradição de irem buscar os “velhos” ao local onde eles se reúnem para jantar,
para os acompanharem até ao local de onde arranca o cortejo do pinheiro. Em vez
disso, optarom por render essa homenagem aos que participavam no jantar
promovido, pela primeira vez, pela Escola Secundária Martins Sarmento. Essa
atitude não os honra. Porque se a ideia era afrontar os membros da direcção da
Associação dos Antigos Estudantes, foi a memória nicolina, representada pelos
“velhos” de todas as gerações, que ofenderam.
Não quero crer
que o que motivou a decisão da Comissão esteja relacionado com o local onde os
“velhos” se reuniram para jantar, a Escola Secundária Francisco de Holanda, por
entenderem, como alguns entendem, que a Escola Secundária Martins Sarmento tem
prerrogativas especiais quanto a esta festa. Ou será que não explicaram a quem
assim posa pensar que a festa de S. Nicolau não é,nem nunca foi, uma
festa de escola, mas sim a festa dos estudantes de Guimarães?
Se não explicaram, tentarei eu explicar.
Tanto quanto é
possível saber, a origem das festas escolásticas a S. Nicolau terá estado
ligada aos rapazes que aprendiam latim na Colegiada de Guimarães, os coreiros.
Demoraria algum tempo a explicar do que se falava, desde o século XVII até à
restauração das festas no ano de 1895, quando se falava num estudante. Direi,
grosso modo, que eram aqueles que eram os que, em cada momento, andavam a
estudar, mas também todos aqueles que já tinham estudado, desde que mantivessem
determinadas condições, que seriam registadas nos estatutos de 1838 da
Associação Escolástica de Guimarães.
Em 1774, o
Marquês de Pombal criou em Guimarães uma cadeira de latim, que funcionou até à
aposentação do seu último titular, em 1869, do célebre professor Venâncio, aliás, Francisco
Pedro da Rocha Viana. Pouco depois, as festas dos estudantes de Guimarães a S.
Nicolau entram em declínio, parecendo encaminhar-se para a extinção. Ainda se
realizaram até 1872.
Sinal disso é o
que se escrevia, em Dezembro de 1876, no jornal Religião e Pátria:
O alegre,
o folgazão, o garrido, o enamorado, o querido das damas, o secular festejo
escolástico… morreu! Há anos que estava agonizante, e sempre para o ano futuro
se lhe profetizava a morte. Agora, porém, foi certo.
Como
deixa saudades aquele folgar de rapazes.
No entanto,
ver-se-ia que era precipitada a notícia da morte das festas a S. Nicolau, que
ressurgiram no ano de 1881. No ano seguinte, seriam asseguradas pelos
estudantes do Instituto Escolar da Sociedade Martins Sarmento, entretanto
criado. Até 1884, os festejos mantiveram-se intermitentes. Depois, acontece um
novo período de ausência. Em 1892, o curso infantil de ambos os sexos da
Sociedade Martins Sarmento voltou a festejar S. Nicolau. Nos dois anos
seguintes os antigos folguedos nicolinos seriam evocados pelos estudantes do
Colégio de S. Nicolau, entretanto criado. Em 1895, as festas dos estudantes a
S. Nicolau foram reinventadas por Jerónimo Sampaio e Bráulio Caldas, com um
modelo que se manteria, no essencial, até aos dias de hoje.
Desde então, com
altos e baixos, mas com raríssimas interrupções, as festas continuaram, sendo
asseguradas pelos estudantes de humanidades. Em 1896, o “seminário pequeno” da
Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, que começara a funcionar em Dezembro de
1891, transformou-se em liceu nacional, com os seus custos a correrem por conta
do erário municipal. As festas a S. Nicolau foram, desde aí, apropriadas pelos
estudantes do seminário-liceu. Em 1911, com a extinção do seminário, ficou o
liceu nacional, que, em 1917, por proposta do cónego José Maria Gomes, então
deputado, seria elevado à condição de liceu central, passando a designar-se,
por decreto de 7 de Janeiro de 1919, Liceu Central de Martins Sarmento.
Em 1921, o
ensino liceal passou a organizar-se em três ciclos: o 1.º, com dois anos; o
2.º, com três, e o 3.º, com dois. Em 1928, o 3.º ciclo foi retirado ao Liceu
Martins Sarmento, situação que se manteria até 1958. Durante essas três
décadas, as festas nicolinas foram organizadas pelos estudantes dos dois ciclos
que funcionavam no liceu, que iam até ao antigo 5.º ano do ensino liceal
(correspondente ao actual 9.º ano).
Entretanto, no
ano lectivo 1947-1948, aconteceu a reforma do ensino secundário, que ficou
estruturado em duas grandes vias, diferenciadas quanto aos currículos e à
origem social dos que os frequentavam: o ensino técnico, destinado aos filhos
das famílias menos favorecidas, e o ensino liceal, direccionado para a
prossecução de estudos no ensino superior, destinado aos filhos das classes com
maiores rendimentos. Esta distinção também marcou as festas nicolinas, que
haviam sido apropriadas pelos estudantes do Liceu de Martins Sarmento,
entretanto baptizado de Liceu Nacional de Guimarães, assumindo uma feição
marcadamente elitista. As festas estavam interditas aos estudantes da Escola
Industrial, que eram objecto de práticas humilhantes, de que é exemplo o que
aconteceu quando, na manhã que seguiu a uma noite de roubalheiras,
encontraram afixada à porta da Escola uma placa com a inscrição “Casa dos
Pobres”.
Com o 25 de
Abril, ganhou terreno a ideia de acabar com a distinção entre liceus e escolas
técnicas. Em 1975, foi extinto o ensino técnico, criando-se o ensino secundário
unificado. Iniciava-se o processo de extinção dos liceus. A partir de 1978,
desapareceu a designação de liceu dos estabelecimentos que ainda a conservavam,
passando todos os antigos liceus e escolas técnicas à condição de Escolas
Secundária. Desde então, deixou de haver qualquer distinção entre as escolas
secundárias portuguesas, que passaram a ministrar os mesmos cursos. E as festas
nicolinas adaptaram-se aos novos tempos: deixaram de ser dos estudantes do
antigo Liceu de Guimarães, como haviam sido durante algumas décadas, para
passarem a ser de todos os estudantes do Ensino Secundário de Guimarães.
Porque, ao contrário do que alguns pensam, as festas nicolinas não são de uma,
nem de várias escolas. Porque não são de escolas. São, como sempre foram, dos
estudantes de Guimarães. De todos os estudantes de Guimarães.
No pregão de 2013,
leio que o pregoeiro aparece identificado como aluno do Liceu de Guimarães, o
que está longe de corresponder à verdade, digo-o eu, que fui aluno do tal
liceu, de onde saí no último ano da sua existência (1977). A escola que o rapaz
frequenta chama-se Escola Secundária Martins Sarmento.
Se se pretende
um regresso ao passado para se entregar os privilégios nicolinos aos sucessores
dos seus detentores originais, temos que ir até ao tempo em que as festas eram
dos estudantes de latim de Guimarães. Alguém me sabe dizer por onde é que eles
andam?
(Confesso que me
incomoda ouvir utilizar a designação salazarenta de Liceu de Guimarães em vez
de Escola Secundária Martins Sarmento. Se querem que seja liceu, chamem-lhe
liceu, mas ao menos respeitem a memória do seu patrono e utilizem a designação
que lhe foi dada em 1919: Liceu de Martins Sarmento.)
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