Camilo Castelo Branco |
14 de Julho 1882
O escritor e romancista
Camilo Castelo Branco visita esta cidade.
(João Lopes de Faria, Efemérides
Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol.
III, p. 36)
Guimarães é presença
recorrente na obra de Camilo Castelo Branco. O escritor de Seide conhecia bem o
velho burgo, que utilizou como pano de fundo de várias das suas obras. E aqui
tinha “um
amigo, como usam raramente ser os irmãos”, Francisco Martins Sarmento, que visitava de quando em
quando.
A primeira notícia da
presença de Camilo em Guimarães é-nos dada pelo próprio no Discurso Preliminar das suas
Memórias do Cárcere, onde conta como, em 1860, andando fugido ao mandato de
captura que fora emitido na sequência do processo de adultério que lhe fora
movido por Manuel Pinheiro Alves, não encontra leito onde encostasse a cabeça. Haviam-lhe indicado a estalagem da Joaninha, na Praça da Oliveira, que
descreveu com rigores de soda cáustica:
Joaninha
é duma velhez repelente, e está curtida em camadas de lixo empedrado. A sua
casa é um pântano de miasmas, e os seus leitos guardam nas furnas, roídas pelo
dente dos séculos, muito bicho, coevo do rei Bamba, que lhe cravou a oliveira à
porta. O repasto, que ali se dá na banca de pinho contígua ao leito, seria um
cozinhado de Locusta, se tivesse a subtileza dos celebrados venenos da romana.
É coisa que puxa pelo estômago, e o desmancha febra a febra.
Num
dos seus livros, Amor de Salvação, publicado
dois anos depois das Memorias do Cárcere,
em 1864, Camilo regressaria à mesma estalagem. A Joaninha e a estalagem que ele
aí descreve contrasta profundamente com as memórias que lhe ficaram da sua passagem por Guimarães em 1860:
Serenou-se
o aspecto de Afonso de Teive, e fomos indo silenciosos, até apearmos em
Guimarães na estalagem da Joaninha, que está neste mundo a competir em graças, limpeza
e poesia com a Joaninha de Almeida Garrett, nas Viagens.
Jantámos,
saímos a ver a terra, que eu nunca vira em Dezembro, enxergámos à luz crepuscular
umas famosas damas da velha cidade que resistiam ao frio da tarde encostadas
aos peitoris das suas janelas; entrevimos galantíssimos olhos de outras através
das rótulas, que ainda agora nos estão contando virtudes de outras eras,
virtudes que precisavam de rótulas, como as belas flores exóticas precisam de
estufa.
Voltámos
à estalagem, tomámos chá e uns pastelinhos que hão-de ir futuro além relembrando
o mavioso nome da Sra. Joaninha. Depois pedimos duas camas num quarto, e
tivemos a satisfação de ver que nos davam um quarto com cinco camas, ou coisa assim.
A
referência mais antiga a Guimarães que, até agora, encontrámos na obra de
Camilo, aparece no romance Anátema,
de 1851, em que, ao falar de uma cozinheira chamada Micaela, recorda aquilo que
Virey escreveu sobre a beleza das mulheres de Guimarães:
Micaela
e sua irmã Jacinta eram filhas de um cuteleiro natural de Guimarães e desde
1708 estabelecido em Braga. Se não fosse o contraste da irmã, dera-vos aqui em testemunho
real da opinião de formosura por que são tidas as filhas de Guimarães, um tipo
de especial lindeza e graça nesta donairosa Micaela entre os quinze e os seus
vinte e quatro anos.
O
primeiro dos Doze Casamentos Felizes,
obra de 1861, é povoado de personagens, as Noronhas, que contrastam vivamente
com o modelo de beleza que Micaela personificava. Termina assim:
… e vou terminar,
pedindo ao leitor que, se algum dia for ao Minho, procure a casa do Sr. João
António Francisco, peça agasalho, que o há-de ter regalado, e contemple o que é
a genuína e desartificiosa felicidade conjugal.
Se, depois, voltar por
Guimarães, peça o leitor que o apresentem em casa das Sras. Noronhas, e verá o que
são mulheres tolas e feias.
Uma das últimas
obras de Camilo Castelo Branco foi escrita a meias com Francisco Martins Sarmento
(a quem o romancista dedicara a sua obra No
Bom Jesus do Monte, de 1864, e um
estudo literário, incluído no livro Esboços de Apreciações Literárias, de
1865). Trata-se de uma polémica simulada e jocosa, inicialmente publicada num
jornal de lisboa, em que ambos os escritores escreveram sob pseudónimos, depois
coligida numa obra com fins filantrópicos com o título Estudos da Velha História
Portuguesa.
Guimarães
na obra de Camilo Castelo Branco.
Até ao momento, anotámos
referências a Guimarães em mais de três dezenas de obras de Camilo Castelo
Branco. Aqui fica a lista, que não é exaustiva e está aberta a outras contribuições:
1851 - Anátema
1854 - Mistérios de Lisboa
1861 - Doze Casamentos Felizes
1861 - Romance dum Homem Rico
1862 - Coração, Cabeça e Estômago
1862 - Memórias do Cárcere
1863 - Anos de Prosa
1864 - Amor de Salvação
1864 - No Bom Jesus do Monte (dedicado a
Martins Sarmento)
1864 - Vinte Horas de Liteira
1865 - Esboços de Apreciações Literárias
(texto sobre Francisco Martins Sarmento)
1867 - Coisas Leves e Pesadas
1871 - A Morgadinha de Val-d’Amores (in
Teatro Cómico)
1874 – O Regicida
1875 - A Filha do Regicida
1875/1877 - Eusébio Macário
1875/1877 - Novelas do Minho (A Viúva do
Enforcado)
1876 - A Caveira do Mártir (Introdução)
1876 - Curso de Literatura Portuguesa (Sobre António
Lobo de Carvalho)
1877 - A Formosa Lusitânia, Catherine
Charlotte Jackson (tradução)
1877 - Noites de Insónia, oferecidas a
quem não pode dormir.
1879 - Cancioneiro Alegre I (Sobre Gil Vicente
)
1880 – Ecos Humorísticos do Minho
1880 - Textos sobre Camões
1881 - Gil Vicente
- Embargos à Fantasia do Senhor Teófilo Braga
1882 - A Brasileira de Prazins
1882 – Narcóticos I (Ideias de D. João
VI)
1884 -
O Vinho do Porto
1885 - Sá de Miranda
1885/1886 - Maria da Fonte
1887 - Estudos da Velha História Portuguesa
(sob pseudónimo, com Francisco Martins Sarmento)
2 Comentários
Esta senhora, também conhecida como a Joaninha Pasteleira era casada com António Manuel Martins. O seu estabelecimento chamava-se, na realidade, Hospedaria Real, mas foi sempre conhecido como a estalagem ou a hospedaria da Joaninha. João de Meira, num texto que já publiquei aqui, localiza-a:
"Junto aos Paços do Concelho, na fachada do poente, era a hospedaria da Joana dos pastéis, a Joaninha da tradição e dos romances do Camilo."
Em 1874, no mesmo local, na Oliveira, suponho que já sem a Joaninha ao leme (não encontro registo do seu falecimento, mas no início da década de 1860 já era, na descrição de Camilo, duma "velhez repelente") foi inaugurado o Hotel de Guimarães.