O
pregão de 1943 voltou a ser escrito por Delfim de Guimarães. É o oitavo (nono,
se contarmos o “Pregão da Saudade” de 1942) que saiu da sua pena satírica. Foi
lido por José Augusto Vaz da Costa Marques.
Depois
de terminadas as festas, escreveria o O
Comércio de Guimarães:
No domingo exibiu-se o «Pregão», da
autoria do nosso bom amigo o snr. Delfim de Guimarães, um vimaranense que vive
e sente a vida da sua Terra, estando sempre pronto a dar lhe o seu esforço e
dedicação.
Muito mimoso e fazendo chistoso
apanhado dos acontecimentos mais palpitantes locais, agradou e mereceu fartos
aplausos.
Aqueles
eram tempos difíceis, com a guerra a assolar a Europa e os seus efeitos a
fazerem-se sentir sobre Portugal, que se mantinha neutral. Faltavam os géneros, as bichas eram um tormento, havia fome, prosperavam os açambarcadores.
Mas não faltava o vinho, o tal que dava de comer a “um milhão ou mais de
portugueses”. Tudo isto passa pelo pregão nicolino, onde não falta a referência
à publicação, por aquela altura, do estudo que A. L. de Carvalho dedicou às
festas de S. Nicolau em Guimarães.
O Pregão de S. Nicolau
RECITADO
EM 5 DE DEZEMBRO DE 1943
PELO ALUNO DO 6.º ANO
José Augusto Vaz da Costa Marques.
Rapazes:
o Sampaio ainda é vivo e forte!
Ele
anseia viver e repelir a morte
Enquanto
for com vida a vida que mais preza:
A Festa a Nicolau de espírito e beleza!
Romântico
de antanho, um louco, um sonhador,
Ele
deu a esta Festa a
alma, o grande amor,
E ali,
no coração, fá-la pulsar, vibrar!
Ninguém,
ninguém como ele a sabe tanto amar!
Ele é
o Avô da fesla! A estima e gratidão
Não as
poupeis ao nobre e rígido ancião!
*
* *
Vai ao ar, outra
vez, o meu Pregão vibrante:
Clarim
e porta-voz da Festa do
Estudante!
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Tolerem-me,
Lá em Cima, o Bráulio e o Arnaldo,
O
Meira e o Roriz, o púcaro do caldo
Sem um
fio de azeite e quente poesia.,.
Azeite…
isso não há... e estro é água fria...
Perdão
também te peço, ó Santo, o Nicolau:
Tu vês
esta magreza!... Eu sou um bacalhau,
Um
badejo esquelético, assim… camuflado...
Outros
tempos, meu Deus !... Eu era sempre assado,
Era à Gomes de Sá, cozido com batatas,
Fiel, sempre em jantares, fiel sempre em ceatas...
O que
sou eu agora?!... Um zero vil sem cabo...
Nem
barbatanas tenho e já não tenho rabo...
Meteram-me
num poço escuro como um prego
Que
foi comércio outrora, hoje é comércio nepro…
Ai!
tempos que lá vão, dos pastelões loirinhos,
Das
iscas nas sertãs, das bolas de bolinhos,
E quão
feliz eu era, o cheiro que eu espalhava!...
Cheirava
a bacalhau! deveras que cheirava!...
O que
nos vale, ó Santo, é o vinho, que é a rodos!...
O povo
agora pode entrar nos tascos todos,
Beber
até cair, que o vinho é tantas vezes
A vida
de um milhão ou mais de portugueses...
Que se
produza… sim... mas que se beba, olé!...
O mata-ratos, não; abaixo a água-pé,
E viva
enquanto o vento a casa não
destroça
O
verde carrascão da tasca da Pescoça...
Melhor
do que Falerno ou que
o Casal Garcia,
O que
nos dá a verve, a
graça, a alegria,
Eh! paz... aquilo sim... é um beijo, um vivo
amor,
Nas caves da Império, o
branco tentador!...
Não tem racionamento, imprecações ou rixas...
Pode-se entrar… entrar… Entrar que não há bichas…
*
* *
Calquemos
o asfalto escuro da cidade
E o
moderno empedrado ao longo destas ruas…
Digamos
a seguif verdades nuaí, cruas,
Doam a
quem doer, de crítica mordaz,
Mas
com aprumo sempre e inteligência audaz...
Principiemos,
pois:
Esplêndido
trabalho
Aquele
que nos deu A. L. de Carvalho
No seu
São Nicolau eenosso Santo Amado!-..
Ao seu
trabalho honesto, e probo, e aturado,
Rendemos
parabéns: Que a edição se esgote
E
quebre os dentes vis aos zoilos de Serrote ...
O Vitória, outra vez, é o Campeão à nuca
Do Distrito de Braga e
honra de Araduca.
Saudamos o seu Onze — um acto altivo e justo —
No
grande treinador e rijo Alberto Augusto.
A Ordem fez rateio, e fê-lo sem malícia,
Tocando
a Guimarães metade dum polícia...
Das
casas telha-vã às casas solarengas
A
Grandeza surgiu no Séquito de
Oferendas
Em
prol dos Hospitais, da Dor, da Caridade !
Irmãos
foram nobreza e povo na Bondade!
Urgezes, Creixomil, agora,
o próprio seio,
Às
duas já o pisa a chanca do correio...
Preciso
é dar saída a
agravos, a arrelias,
No limite, em questão, das nossas freguesias...
Os Bombeiros vão ter a Casa inaugurada
Com
festa de espavento e que há-de ser falada...
A Penha, a nossa Penha!... Eu
olho-a e triste fico...
O
nosso Pina é pobre...
Ah! se ele fosse rico!!...
Mais
luz à Avenida esbelta
dos Pombais,
Que a
escuridão só serve a actos imorais...
Deitaram
um remendo ao campo do Vitória...
Histórinha...
histórinha... e acabou-se a história...
A
crítica, afinal, foi doce e não mordaz...
Às
vezes calha assim... e faz-se marcha-atrás…
*
* *
Esta Festa é só nossa e não de sapateiros...
Não
tem aqui entrada o bico de
caixeiros,
Seja
metro ou sovela... Assim o brado arguto
O
nosso secular e rígido Estatuto...
*
* *
Velhos
que Lá estais: em nós a saudade
Por
vós é sempre viva! Até à cova há-de
Lembrar
e relembrar as nossa patuscadas,
Tertúlias,
bom humor, as francas gargalhadas
Nas
salas do Cabreiro e nos cotés da Linha,
Rojões
no Zé da Costa e papas no Terrenha,
Nas
grades do Toural, em
torno do Jardim,
O
nosso cantochão e que
dizia assim:
“Ó
Prechas, anda cá abaixo....
Anda-nos
dizer: rapaz
Deita
palha ao macho...”
E tudo
se acabou... Ao longe, na Atouguia,
Dormem
na paz da terra a graça, a alegria...
*
* *
Não se
esquece o Pregão de vós, ó raparigas,
Tricanas
que cantais e rendilhais cantigas
Ao
tiquetaque e som das leves lançadeiras.-.
E em
nossos olhos sois, ó lindas costureiras
De
olhos azuis do céu da nossa terra amada...
Muita
atenção à agulha... Às vezes, enfiada,
A um
pequeno deslize a linha sai do posto...
Desenfiada
então... mau gosto é... mau gosto...
*
* *
Há uma
lenda assim dos tempos que lá vão:
— Um
Príncipe Encantado em densa escuridão
Só
poderia o Sol, o Sol um dia ver,
Quando
junto de si sorrisse uma mulher...
Uma
Princesa então, mais linda que os amores,
Filha
de heróicos reis, neta de imperadores,
Sentiu
pelo Princezinho uma paixão tão forte
Que
foi na escuridão, sem medo à própria
morte,
Um
sorriso levar, de Sol iluminado,
Ao
Príncipe da lenda, ao Príncipe Encantado...
Nós
não queremos mais, Senhoras, que um sorriso...
Uma
boca a sorrir é o Sol, é o Paraíso...
*
* *
Sentido!...
Um passo em frente!... A
maçaneta
erguida!...
Que
esta luta se fira intrépida e renhida
Como
outrora a de Afonso além, em S. Mamede!...
O
mundo diz que tem de sangue muita sede!...
Pois
bem: dê-se-lhe sangue ao beberrão imundo
E
estoire em congestão a estupidez do mundo!...
Dezembro
de 1943
DELFIM DE GUIMARÃES
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