O Guimarães |
20 de Junho de 1877
Às 5 horas da tarde deste dia, conforme se pode ver nos jornais da
localidade então existentes, "Religião e Pátria", 22.ª série, nº 23 e
"Imparcial", 6º ano, nº 42, e no dia 21 como diz o padre Caldas a fl.
268 do 2.º vol. do seu "Guimarães", foi colocada no cimo do frontispício
dos Paços do Concelho, depois de ter sido limpa e escudada da pintura, a figura
símbolo de Guimarães, que em 11 de Agosto de 1876 havia sido apeada do velho edifício da Alfândega que se andava demolindo e conduzida para
uma loja do hospício dos expostos onde esteve até este dia 20 de Junho de 1877.
(João Lopes de Faria, Efemérides
Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol.
II, p. 284)
Como outras terras, Guimarães tem o seu símbolo epónimo. É o Guimarães, que, do alto da antiga Casa
da Câmara olha para a Praça Maior, a Oliveira. Tem um rosto cinzelado sobre o
ventre, sendo associado à tradição das duas
caras, que se refere a uma suposta duplicidade de carácter das gentes de
Guimarães.
Trata-se duma escultura talhada em granito fino, do século XVIII, irmã do
Afonso Henriques que encima o pórtico voltado a norte do palacete de Vila Flor.
Esteve originalmente colocado em cima da Casa da Alfândega, que se encostava ao
lado exterior da muralha de Guimarães, voltada para a desaparecida igreja de S.
Sebastião, junto ao local onde hoje ainda se pode ver o pano de muralha (aliás, a face virada a sul da antiga torre da Alfândega) que
agora ostenta o dístico Aqui nasceu Portugal. Enquanto aí permaneceu,
apresentava uma roupagem diferente da actual, mais colorida, uma vez que estava
pintado em policromia, cujos vestígios foram removidos em 1877.
Há uma outra interpretação das duas caras de Guimarães, com origem
recente, que remete para o seguinte episódio da conquista de Ceuta: tomada
aquela praça marroquina, D. João I repartiu a defesa dos diferentes troços da
sua muralha pelas terras que o acompanharam na conquista. Como os de Barcelos
se puseram em retirada perante a arremetida dos mouros, deixando desguarnecida
a estância que lhes cabia defender, foram os de Guimarães que se desdobraram,
cumprindo, com sucesso, a sua missão e a dos de Barcelos. As caras da estátua
representariam as duas frentes (caras) que os vimaranenses terão defendido em
Ceuta. Esta versão, sem suporte documental nem tradição historiográfica, não
tem sustentação. Além do mais, na nossa língua, cara nunca foi sinónimo de
frente de batalha…
Pelo local onde esteve originalmente implantada, bem como pela sua
iconografia, estamos em crer que a estátua do Guimarães foi mandada fazer com o
propósito de dar corpo a uma figura tutelar que simbolizasse a então vila de
Guimarães. As fontes mais antigas que nos falam desta peça referem-se-lhe como
“a figura de Guimarães” ou “o Guimarães”. A esta luz, a não ser por obra de um
inusitado sentido de auto-ironia dos vimaranenses que encomendaram a obra,
resulta difícil de entender a sua interpretação enquanto representação
simbólica das duas caras, com toda a carga depreciativa desta expressão, dando
razão a uma suposta duplicidade de carácter de Guimarães e dos vimaranenses.
Parece-nos óbvio que a associação às duas caras surgiu depois da obra ter sido
colocada na Casa da Alfândega, por efeito de uma analogia que nada teve a ver
com a intenção inicial que lhe deu origem.
A cara que ornamenta a couraça da armadura do Guimarães, sendo um
pormenor irrelevante, deu origem a uma tradição que perdurou e que se colou à
imagem de Guimarães e dos seus moradores. Há, todavia, na estátua, um elemento
que, a nosso ver, será bem mais significativo, com clara intenção simbólica,
que tem sido ignorado por completo: o emblema inscrito no escudo do guerreiro,
representando uma árvore que envolve, com as suas raízes, um animal. É este
elemento que sustenta a nossa convicção de que o Guimarães foi esculpido com a
manifesta intenção de ser assumido como a personificação da cidade.
Emblema do escudo do Guimarães |
A árvore do escudo é a oliveira, elemento que, desde a Idade Média, está
associado a Guimarães, figurando no brasão da cidade. Trata-se da representação
da oliveira que dá o nome à Praça Maior de Guimarães, que esteve na origem de
uma notável série de milagres, registados em meados do século XIV. O animal é
um leão, que em geral se associa ao poder, à justiça, à força e à nobreza.
Porém, aqui não está representado na sua posição de majestade, o leão rampante
das representações heráldicas, mas sim deitado e subjugado pela oliveira, que
se lhe sobrepõe e o domina com as suas raízes, que o envolvem como uns longo
dedos asfixiantes. O que ali vemos é um leão caído e derrotado.
O leão foi assumido pelo rei Afonso IX nas suas armas reais, tornando-se
na insígnia dos seus sucessores. Está presente, desde sempre, nas armas reais
de Espanha. Nos brasões portugueses, simboliza, em muitos casos, uma aliança
com a casa real de Leão (Espanha) ou uma concessão por ela outorgada. A figura
do leão está, assim, associada a Espanha.
Eis o que representa o emblema do escudo do guerreiro da Casa da Câmara:
a oliveira que venceu o leão. Guimarães que resiste e que vence Espanha, numa
referência à contribuição desta terra para a génese da nacionalidade
portuguesa, com a independência conquistada contra Espanha, à afirmação da
nacionalidade em 1385, com D. João I e à sua recuperação, em 1640, e
subsequentes guerras da restauração, que ainda perdurariam nas memórias de
muitos vimaranenses quando a estátua foi erigida.
O nobre guerreiro que espreita a praça da Oliveira, do alto da antiga
Casa da Câmara, é Guimarães que se contempla a si própria.
Nota: Este texto é uma versão encolhida de outros que podem ser lidos
aqui:
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