Eduardo de Almeida, fotografado quando falava no cemitério de Briteiros, no dia 9 de Junho de 1933 |
Eduardo de Almeida exerceu,durante a Primeira República, diversos cargos políticos, tanto a nível local como nacional, e presidiu à Direcção da Sociedade Martins Sarmento. Era um notável escritor e um orador de grandes recursos. No programa do centenário do nascimento de Francisco Martins Sarmento, em 1933, coube-lhe fazer o discurso evocativo da memória do arqueólogo vimaranense junto ao seu túmulo, no cemitério de S. Salvador de Briteiros. Por aqueles dias, publicou no jornal O Comércio de Guimarães um texto em que desfia as suas memórias sobre o Desencatador de Citânias. Aqui fica.
1833-1933
NO
PRIMEIRO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO
Do insigne arqueólogo vimaranense
MARTINS
SARMENTO
Mui raramente estes homens de singular e
bisonho aspecto, a quem denominam sábios — leve sorrir de respeitosa ironia — com
as particularidades esquisitas e seu tanto escandalosas de impenetrável
recolhimento — lâmpada de vigília sempre acesa na morta noite — , de seca
austeridade angulosa, semanas sem domingos, e os meses enfiados sem uma só notícia
para as senhoras vizinhas ou para o cavaco do café e da botica, como no total
alheamento da vida inquieta, e suas características manias, absortos,
distraídos, como sonâmbulos espirituais, conseguem de entre os conterrâneos a
aura de simpatia popular que, sempre, envolveu e exalçou a figura e o nome de
Sarmento.
A gente de Guimarães pouco o via. No dia 9 de Março, dia de seus anos, depois da
festa na Sociedade, a direcção, os amigos, algumas das crianças com seus pais
ou professores, subiam ao Carmo, entravam-lhe em casa, onde, num dos magníficos
salões, encostando-se ao fogão, recatado na sombra, esguio, modesto, a
afabilidade mais desprendida e simples, ele recebia os cumprimentos, sem
discursos, vãs palavras ou efusões.
Depois, lá de longe a longe, de sobretudo,
um lenço branco atado ao pescoço, sem olhar para o lado, sem parar, apreensivo,
fazendo-se ainda mais só, passava nas ruas, ia pela estrada do cemitério, dava
uma volta, invariavelmente seguido a distância regulamentar, mecânica, pela
Senhora.
E não mais se lobrigava. “Foi para Briteiros,
Âncora, Póvoa de Varzim”. — Os jornais ficavam por aqui. E que ciência de mistérios,
arrepiante, ao mesmo tempo árida e tenebrosa, não era aquela para a qual emigrara
com a sua alma e onde a sua vida, que podia decorrer no comodismo elegante e
fácil de lavrador fidalgo, como desaparecia extinta ao convívio social!
Rude trabalho, ingrato, e de inapreensível
desígnio, o de coveiro de idades tão sumidas no tempo que a própria idade se
lhes ignora — supersticiosa pena, se não diabólico feitiço sanciprianesco, o
de querer levantar e ressurgir, mesmo em figuração espiritual, o pó dos
séculos, arrastado, esparso e desfeito pelo vento dos séculos — transformar o
cemitério, se o nome coubera ao montão de pedras calcinadas, numa cidade
primitiva, com seus estranhos habitantes, plástica musculosa de guerreiros e
caçadores, imprimindo-lhe o buliçoso agitamento da luta fera e do amor
violento, da excursão furtiva e do beijo forte, da alegria sangrenta dos
combates e das murmuras, sufocadas angústias da derrota.
Um vago temor do sacrilégio, mesmo. De que
serviria devassar com tão graves cuidados e suadas canseiras, o silêncio engelecido,
vazio, da morte, e não do para além da morta na vida futura, mas do para além
da morte na vida passada?
Há segredos na vida transitada que mais se
impenetrabilizam quanto mais se acometem. O epitáfio é o mesmo, eterno. Dor e alegria. Pena
e amor. Para que escavar de monte em monte, perder as horas em demoradas
contemplações, queimar os olhos e as noites, atormentar o espírito e consumir a
existência breve,à procura deste único tesouro, cunhado nas moedas ou gravado
na argila — a dor e a alegria, o pão e os beijos, as canções e as torturas, que
se foram e voltam, que morreram e renascem?
É já curioso que, por este mágico singular
tão empenhadamente e devotadamente, com uma verdadeira paixão da inteligência,
não menos perigosa, dominante, comunicativa do que as do coração,obstinado e
transformado em Desencantador de Citânias, a gastar suas horas em animar de um
sopro de vida um fragmento de cerâmica, uma estilha de barro natural, com as
primeiras impressões digitais da sensibilidade artística, se não levantassem,
como frisante comentário de julgamento popular, breves sorrisos de ironia
compadecida.
Por mais abstrusa e inusada sua canseira,
senão o tresler de suas ocupações mentais, a gentes mais pobres haviam-no com
respeito, e sincero, e carinhoso.
Sabiam-no, e a intuição se confirmara em
duras provas magníficas, um homem direito, austero, sem ambições nem invejas,
uma riqueza que não era insultante, ou vazia, intelectual não basofiento nem
de pedantismo inchado, e assim se assegurava a certeza, mesmo aos mais ignaros,
de que trabalhava a sério, a sério tomava o seu trabalho, donde alguma coisa de
útil ou de grande haveria um dia de resultar.
Seu nome saíra da pequenina terra, doce e
amigo lar natal, para outras maiores, e maior, lá, se tornara também, como ia
crescendo, e divulgando-se ao conhecimento, a fama de suas investigações tão
laboriosas e ingratas, de suas aturadas vigílias, de suas pesquisas árduas, e
falava-se de seus livros, difíceis de ler, estranhos livros sem novelas de amor,
nem dramalhudos enredos, como roteiros, obra de muito saber e trabalho, de um
espírito reflectido e calmo, mas inquieto e ansioso também, das viagens
aventurosas do antigo nauta, o pobre do homem rude com a sua fome e o seu amor,
por mares e terras esquecidas e não mais navegadas ou distantes e inóspitas,
irriçadas da fera inimiga e da fera bruta.
E parecia, e era na verdade, mais apagada
e como religiosa a sua modéstia, fechado o seu recolhido silêncio e apegado a
um labor incansável, pertinacíssimo. Os eleitos da sua amizade, mui simples e
proveitosa em constante lição de ensinamento — porque tinha uma vasta cultura
profunda e fecunda, ao contrário do modo de ser do erudito pasteloso —, o sério
convicto de seus admiradores, um grupo de intelectuais como nunca entre nós se
vira, famoso grupo de estudiosos e competentes, distintos na sua profissão — e
— lindo tempo esse! — de toda a alma dedicados à causa pública pela instrução,
educação e alevantamento físico, moral e social das classes populares,
consagravam-no definitivamente. Ao lado da sua obra, especialidade
científica, pouco conhecida e cultivada em nossa terra pátria, e em ele
trabalhava com rigorosos métodos, científicos em século e ambiente de luta
entre românticos e naturalistas literários, e em que o maior saber eram
amostras de humanidade, citações do estrangeiro e sentenças latinas, uma outra
obra começou a edificar-se como homenagem que lhe era votada, mas que tanto se
integrava no seu espírito e estava tão dentro do seu coração — como o provou na
vida e na morte — que se juraria inspiração do seu próprio génio: a Sociedade
de Martins Sarmento.
Não é ela por certo que lhe perdura o nome
ou o recomenda à posteridade mas, e assim como guarda, vigia, prossegue e
renova as imortais lições do Mestre, ao inscrever como seu lema a promoção
instrução popular no concelho de Guimarães, vai revivendo o grande Homem em que
viveu o grande Sábio, e cujo valor se não pode nem deve auferir como de somenos
valia — o carácter íntegro, o espírito liberal, o estudioso recolhido e atento,
o trabalhador modesto e infatigável, o severo e denodado defensor da Verdade e da
Justiça — novos alicerces, renovados fundamentos, insubstituíveis preceitos da
vida humana e de todo o desenvolvimento social. O respeito de simpatia e
enternecimento, que sempre logrou Sarmento, por um milagre como prognóstico de
simples intuição — porque tomavam a sério o seu valor e esforços — breve se
converteu na mais afectiva admiração. O Sábio devia ser honra do seu nome e da
sua terra — assim haviam de o julgar os seus pares e os entendidos; mas ao
Homem, simples e bondoso em quem as legítimas e tantíssimas vezes desiludidas
aspirações encontravam seguro esteio, esse apreciava-o e elevava-o o coração do
povo, que não costuma, o pobre enganado de todos os séculos, enganar-se. O nome
de Sarmento alcançou vir até nós aureolado como o dos eleitos, não apenas por
dedicação de centros intelectuais, mas também pela consagração unânime da alma na
vimaranense.
Eduardo de Almeida
O Comércio de Guimarães, 9 de Junho de
1933
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