S. Nicolau |
O pregão
de 1928 foi escrito por Jerónimo de Almeida, sendo o sexto de sua lavra. O
pregoeiro foi Humberto Guimarães Pinheiro, então estudante do 5.º ano do Liceu.
Na imprensa não encontrámos referência a este
número das festas a S. Nicolau daquele ano, a não ser em O Comércio de Guimarães um seco:
"Do pregão, nada
diremos, porque o não vimos.
Foram eliminadas
algumas ruas do percurso."
A razão deste desinteresse pode estar no texto de Jerónimo de Almeida, onde não faltam
alfinetadas à gestão local da coisa pública e às malfeitorias que o poder
central vinha fazendo a Guimarães (a retirada do Regimento de Infantaria 20, a
extinção do Liceu Central):
E
sempre tudo isto, embora o negue a crítica,
Por
causa da maldita Porca da Política;
Dessa
porca revelha e sorna e fedorenta
Que
por todo o País a todos atormenta.
Este
pregão é uma leitura altamente recomendável para quem queira perceber como ia
Guimarães (e o Mundo), naquele longínquo 1928.
Rapazes!
Que
triste coisa a gente ser Poeta!...
(Quanta
vez a pensar eu me concentro)
Pois
ninguém compreende a Dor secreta
Que nos tortura e que nos vai cá dentro!
Somos
como os palhaços que, entre risos,
Procuram
disfarçar a sua mágoa,
Fazenda
retinir, no circo, os guisos,
Com os
olhos, talvez, bem rasos de água!
Mas esta
vida é assim para quem mede-a
E
queima o coração na sua
chama:
— Uma tremenda e intérmina comédia
Que,
muitas vezes, se transforma em drama!
O
remédio é axeitar esta mentira,
Pois
cada um foi para o que nasceu;
Enquanto
que dedilho a minha lra,
Olhando
deste inferno para o céu!...
Eu bem sei que já fui como
vós sois,
E que
hoje sou um velho ao pé do que era;
Mas o Outono
aproxima-se… e depois
Nunca
mais tomo a ver a Primavera!
Ai
tendes, Rapazes, mais um BANDO
Para
entreter a vossa Mocidade,
E se
quereis pagar-me o que
vos mando,
Abri-me
as portas da Imortalidade!...
Pregão
Escolástico
Recitado
em 5 de Dezembro de 1928
PELO QUINTANISTA DO LICEU MARTINS SARMENTO:
Humberto Guimarães
Pinheiro
Que
foi que aconteceu?! Que ruim marasmo é esse
Que
teus brios gelando, ó Guimarães, parece
Lentamente
apagar os teus remotos brilhos?!
Acaso
já não tens o afecto de teus filhos
Para
te defender das asas do infortúnio?...
Que
destino fatal às tuas almas une-o,
Como
dura grilheta aos pés dum condenado?!
Dar-se
há, porventura, o caso inexplicado
(Que
com o nosso amor sempre leal contrasta)
De, na
verdade, seres para os filhos teus “madrasta “?!
Não
quero acreditar: boa mãe não enjeita
Aqueles
que, algum dia, aos peitos seus aleita.
Se a
Velhice perdeu o entusiasmo e a crença,
Lançando,
em derredor, um olhar de indiferença;
Um
olhar que não é senão uma saudade
Do
tempo que passou, feliz, da mocidade,
— Outro
tanto não deve acontecer a ela,
À
nossa Juventude esperançosa e bela,
Cujos
olhos só põe, radiantes, no futuro.
Rasguemos
esse véu sinistramente escuro
Que de
más apreensões por sobre nós transborda,
E
clamemos bem alto: “Ó Mocidade, acorda!
É
tempo de lutares por um nobre ideal:
— Seja
ele o teu amor pela terra natal.
Todo
aquele que despreza a terra em que nasceu,
Não
ama a sua Pátria e este dourado céu!
E que
outra mais formosa existirá do que esta,
Que
dir-se ia estar constantemente em festa,
Inundada
de sol, de risos e de alfombras,
Por
onde a gente vai gozar dúlcidas sombras?!
Que
pródigo Deus foi, com suas mãos piedosas
Em
convertê-la assim num canteiro de rosas!...”
Assim
pensava eu... Mas eis que ora te vejo
Caminhar
para trás, como anda o caranguejo,
E sem dó,
nem piedade pelo património
Que
herdaste dos avós (não lembra isto ao demónio!)
Olhando,
com rancor, para os teus monumentos,
Ousaram
arrancar-te a talha dos conventos!
Algum
tempo depois, e como por acinte,
Tiraram-te
de cá Infantaria 20.
Em vão foste pedir, colérica, ao Governo,
Que
houvesse para nós um proceder mais terno.
Nunca
mais, desde então, embora custe, enfim,
Fomos
ouvir tocar a música ao Jardim!
Por
isso tem corrido há tempos o boato
De que
a Câmara pensa em fazer um contrato,
Com o
fim de adquirir ali nas “NOVIDADES”
Um
gramofone bom, para matar saudades...
Dou-lhe
os meus parabéns e está nos seus direitos.
Já,
por isso, mandou pôr os bancos direitos.
Sócios
meus, que o Menano ainda não ouvistes,
Já não
será mister dar a “volta dos tristes...”
Não
ficou por aqui ainda o nosso mal:
— Acabaram
este ano com o Liceu Central!
Oxalá
que algum dia ainda, Deus do céu,
Não
acabem também com o próprio Liceu!
E
sempre tudo isto, embora o negue a crítica,
Por
causa da maldita Porca da Política;
Dessa
porca revelha e sorna e fedorenta
Que
por todo o País a todos atormenta.
Mas
visto estar para breve o tempo da matança,
E toda a gente querer empanturrar a
pança,
Hoje,
aqui, vou propor a todo o lambareiro
Para
me auxiliar a assaltar o fumeiro!...
Ora
digam-me agora o que nos levam mais:
— A
Escola Industrial e as Escolas Centrais?!...
Levai,
levai-nos tudo e acabe-se com isto,
Porque
ainda muito mais sofreu o pobre Cristo!...
Eu bem
sei, Guimarães, que adoras o Progresso,
Mas,
se olho para ti, só vejo Retrocesso!
Eu bem
sei que tu tens já rede telefónica
Para
poderes falar, em linguagem lacónica,
Com a
China, o Japão e com o Polo Sul!
Eu bem
sei que o Toural fica todo taful,
Coberto
de mosaico, à moda do Rossio,
E até
o D. Afonso, orgulhoso, sorriu,
E
pôs-se a soletrar o gótico arrebique:
— Lisboa, Santarém,
S. Mamede e Ourique!...
Também
sei que o Turismo enfeitiçou-o a Penha;
E que
vimaranense há aí que se detenha
Sem já
lá ter subido de camionete?
— É
assim que o Bom Jesus num chinelo se mete...
Mas
ainda irá mais longe a sua iniciativa
Que,
em breve, tornará aquela serra altiva,
De
todo o Portugal, na mais formosa estância.
A eléctrica
se vê à medonha distância
De cem
léguas a pé... De noite é como dia;
E este
ano, no verão, houve lá tal folia
Para
entreter o tempo a quem não tinha sono,
Que
até, tapando a cara, o próprio Pio-Nono
Clamou
em alta voz, de cima dos penedos:
“Meu Deus, levai daqui para
longe estes brinquedos!...”
Voltando,
novamente, os olhos cá para baixo,
Alguma coisa mais para dizer-vos acho:
— Vós
que vos orgulhais de terdes em Sarmento
Um
conterrâneo ilustre, Imortal ornamento
Da
lusa Arqueologia — olhai essa Muralha
De que
resta somente agora essa migalha!
— Cortaram-lhe
um pedaço o, com fatais ideias,
Cobriram-na
de terra até quase às ameias.
Não
contentes com isto, abriram-lhe uma porta
Que
jamais existiu, pondo a muralha torta,
Para
ali entalar os Paços do Concelho,
Tapando-nos
em cima, o Paço nobre e velho!
Oh,
que tristeza faz essa relíquia agora,
Se a
gente a comparar com o que foi outrora!...
Guimarães
vai perdendo o seu aspecto antigo,
Mercê
desse mau gosto exótico e inimigo
Que
tenta demolir tudo quanto era belo
E é
capaz de ameaçar as ruínas do Castelo!...
Louvado
seja Deus, que escapou, por um tris,
O
histórico, famoso o lindo Chafariz…
Ainda
bem que, no meio desta derrocada,
O
claustro se restaura da Colegiada,
E de Alberto
Sampaio consagrando o título,
Um
Museu se abrirá na sala do Capítulo,
Para
um dia os vindouros, boquiabertos, mudos,
Não
verem Guimarães só cheia de canudos!...
. . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Firmou-se,
finalmente, a paz entre as Nações.
Nunca
mais se ouvirá o eco dos canhões,
Que
enchera de pavor as campinas da Flandres.
Podem
desenvolver-se as castanhas e as landres,
Que já
não haverá mais ninguém que revogue
O
pacto que, em Paris, fez assinar Kellogg...
Enquanto
que a Inglaterra, a França e a Alemanha
Pensam
em como é que hão-de dar mais castanha...
Já
Marte estremeceu, numa ânsia estarrecida,
Por
lobrigar também que a terra tinha vida,
E
mandou apagar, de noite, a luz eléctrica,
Temendo
acontecer-lhe alguma coisa tétrica!
Bem
certo é o que sonhava o grande Júlio Verne:
— Um dia
chegará em que o homem governe
As
leis da Natureza, e o próprio Deus, lá em cima,
O ceptro
deporá de Rei que desanima!...
Senhoras,
consenti que levante meus olhos
Deste
abismo da Dor, deste vale de abrolhos,
E me
esqueça a sonhar no vosso amor somente,
Pois
só ele, ele só é que nunca nos mente!
Que
valem ambições, palácios e riquezas,
Se em
vosso meigo olhar há um mundo de belezas,
Um
mundo de prazeres, de célicas delícias,
Tecido
de luar, de beijos e carícias!
Deixai
o fox-trot, o tango e os chás-dançantes;
E
vindo-nos amar, a nós, os estudantes.
Minerva
não se zanga; a Deusa da Ciência,
Cansada
de viver na olímpica eminência,
Desceu
do áureo trono em célere avião,
E seus
divinos pés pousando sobre o chão,
Tirou
o capacete e o arnês de que se ufana,
E vem
hoje cear connosco à americana...
Oh,
nunca elogieis as negras sufragistas,
Votai na
nossa urna as vossas brancas listas!
E
embora vós useis cabelos à ninon,
Saias
pelo joelho e lábios com baton,
Não
queirais imitar nunca o Sexo-forte,
Pondo
em risco de vida a vossa frágil sorte!...
Tricaninhas,
e vós?! O que é que vós quereis?!
Casardes-vos,
talvez, com um Doutor de Leis!
Oh,
não! não pode ser! É papa muito fina
Para
quem traz as mãos sujinhas da oficina.
Tenho
pena de vós, oh, muita pena tenho
De ver-vos
padecer e o meu maior empenho
Era
ver-vos calçar no “Atlas” ou na “Fox”
O mais
fino sapato e que mais caro fosse)
O
pior... o pior — estais a adivinhar... —
É eu
não ter dinheiro para vos amar!
Contento-me
em ouvir, pelo vosso caminho,
A moda
que anda agora assim: “Santo Antoninho…”
Sopeiras
duma cana, ó meigos querubins,
Que
ides comprar café ao “Ribeiro & Martins”,
Chinela
de verniz e meias muito boas,
Dentro
em pouco sereis vós mesmas as patroas!...
Está
tudo mudado e não me espanto nada
De
ainda chegar a ouvir dar ordens a criada!
Para a
frente é que é! Deixai-vos de panelas,
Que a
gente anda a estudar para se agarrar a elas!
Já
basta de troçar; isto é um velho jeito
De
gostar de berrar a torto e a direito.
Pois
que graça terá dizer só babosices,
Se eu
não vejo, afinal, fazer senão tolices?!...
Mas
sinto-me cansado e ponto vou fazer,
Para
no ano que vem também ter que dizer.
É
tempo de partir. Adeus! E vou-me embora
Pregando
estas razões por esse mundo fora.
Mas
antes quero ouvir rufar com bem ardor
Um
hino colossal de caixa e de tambor,
Para
que Nicolau, o Santo nobre e grande,
Julgue,
ao ouvir-nos no céu, que isto é um jazz-band!...
Deo gratias.
Jerónimo de Almeida
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