S. Nicolau num rótulo de vinho |
Em
1920 celebraram-se os 25 anos do ressurgimento das festas dos estudantes de
Guimarães a S. Nicolau. O pregão deste ano foi dedicado, num soneto que o
antecede, “aos entusiastas de 1895”. Saiu, uma vez mais, da pena de Jerónimo de
Almeida. O pregoeiro foi o “estudante do 7.º no de letras” Bento da Costa Caldas.
PREGÃO ACADÉMICO
Recitado em 5 de Dezembro de 1920
POR
Bento
da Costa Caldas
Estudante
do 7.°
ano do letras
Aos entusiastas de 1895
Às vezes une a sorte as criaturas
Para delas tirar maior proveito,
E diz a cada uma:
“Quem procuras
Ai tens, vive agora
satisfeito.”
E logo se desfazem
as agruras
Que lhes roíam
lentamente o peito,
Sentindo depois
disso só venturas,
A que tinham
legítimo direito.
Assim estas ligou,
em certo dia.
Cedendo a uma a
chama da Poesia
E a outra o
entusiasmo que ainda resta…
Duas vidas, de cuja
mocidade,
Guimarães se
recorda com saudade
E foram toda a alma
desta festa!...
Faz hoje, exactamente, vinte e cinco anos
Que um bando de rapazes joviais, insanos,
Fitando, piamente, os olhos lá no céu,
Disseram entre si: “Nicolau não morreu!...
Ah com que saudade nos lembramos ainda
Da sua antiga festa tão formosa e linda!
Quanta vez, quanta vez, no seu celeste
empíreo.
Não sentiria ele o peito num delírio
Ouvindo, cá em baixo, os rufos dos tambores!
Não possuímos nós os juvenis ardores
Que a louca mocidade dentro em si contém,
Para que a Nicolau festejemos também?...”
Assim falaram... E, ligeiros como um raio,
Logo o saudoso Bráulio e o adorado Sampaio
Desceram, num rompante, às entranhas da
tumba,
Ressuscitando a festa a togues de zabumba.
Há dez anos que a pobre estava, sem
alento!...
Arquivada, entre o pó dos fólios da SARMENTO!
De novo o velho ardor hoje, em nós, se
retrata
Para comemorar tuas bodas de prata.
Estudantes de outrora, oh velhos! um abraço!
Vinde daí também, dai-nos o vosso braço.
Agarrai num tambor, pegai numa baqueta,
E que apareça alguém que connosco se meta!...
Não choreis; eu bem sei que isto vos causa
pena
Lembrar-vos, outra vez, as idas à novena
Antes do sol nascer... Não me faltava
assunto:
Ali, na Conceição, o belo caldo de unto;
As posses que duravam uma noite inteira;
Doces e vinho fino... Ah quanta bebedeira!...
Andava toda a gente aí numa balbúrdia
Enquanto não findasse essa medonha estúrdia!
Chegavam a partir-se os braços mais as
pernas,
Cos efeitos de tantas revoluções internas,
Até que, comprimindo o ventre barrigudo,
Abriam muito a boca e vomitavam tudo!...
Guimarães, nosso orgulho, orgulha-te de nós,
Que assim vamos cumprindo a herança dos avós!
Que seria de ti, desta velha cidade.
Se um dia lhe faltasse a flor da mocidade?!
Quem faria que tu, tanta vez, te sorrisses,
Se nos mostrasses só carcomidas velhices,
O caruncho e o bolor?... Sem os teus
estudantes,
Serias ainda agora o mesmo que eras dantes,
Sem teus belos projectos do arquitecto
Marques,
Nem parques ideais que nunca foram parques...
Avenidas tafuis sem casas, nem esquinas,
E grandes construções a cair em ruinas!...
A progredir assim, certo, ninguém receia
Em afirmar que tu excedes a Pompeia...
Pois se até (coisa estranha!) a tua gente
fina
Para tomar café precisa de ir à “China”!...
Em inventos, então, não há como este sol:
— Não morrerá ninguém tomando o “SANITOL”!...
A nossa capa negra oculta funda mágoa
Lembrando, neste instante, os olhos rasos de
água.
Os que há pouco desceram ainda à terra fria:
O Ribeiro, o Miranda, o bom José Maria
E o capitão da Maina — ilustres professores.
Sentimo-nos feridos por acerbas dores.
Enviando-vos também até à eternidade
A sincera expressão duma funda saudade.
Vós outros que, com brilho e rara
competência,
Nos abris o caminho imenso da Ciência,
Recebei nosso preito ardente e respeitoso.
Andorinhas do amor, que viveis sem repouso,
Repletas de fadiga e preocupações.
Deixai-nos partilhar das vossas ilusões!
Esquecer-me de vós seria muito injusto!
Prometo-vos, para o ano, entrardes no Magusto,
Com a condição porém (porque é petisco raro)
De não beberdes vinho por estar muito caro...
Trabalhai, trabalhai, como a tal costureira,
A agulha e o dedal aqui à nossa beira,
Sem nos abandonar, que a vida passa breve;
E, se preciso for um dia fazer greve,
Havemos de ir também convosco para a rua!...
Vós, camélias gentis, da alva cor da lua,
Que viveis a reler, cheias de comoção,
As páginas fatais do “Amor de Perdição”;
Qual de vós, qual de vós será o meu enlevo?!
Se me ponho a escolher, decerto, nem me
atrevo,
Pois a todas eu dou a minha preferência...
Se numa me seduz a graça da inocência
No seu olhar azul... naquela é o rosto belo
Envolto no negror das tranças do cabelo;
Naquela outra a elegância, o porte peregrino
E o talhe escultural do seu corpo divino.
Perde-se o meu olhar fitando extasiado
A beleza sem par de tanto ser amado!...
Deus fadou a mulher para encantar o homem:
As lutas que ele tem, as dores que o
consomem,
Tudo em pó se desfaz ao pé da sua estrela!
Por isso, ao vosso lado, a vida é sempre bela
Estrelando o porvir com raios de esperança:
— Venturoso o que espera e ainda mais o que
alcança,
Benditas sejais vós, camélias do luar,
Que aos romeiros do amor, os ensinais a amar!
Adeus, bom povo amigo, inventor de quimeras!
Para trás a tristeza, haja alegria... e peras!...
Nossa jornada é grande e bem alta a missão
De recitar este ano o célebre PREGÃO.
E tu, querido Santo e amado Nicolau,
Faz que embarateça, em breve, o bacalhau!
Ah, não deixes morrer a humanidade à fome.
Que ela só é feliz enquanto bebe e come!
Para que sempre em teu dia, com furor
leonino,
Os filhos de Minerva assaltem o teu
hino!...
Jerónimo de Almeida.
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