"A Cidade", por Raul Brandão (3)





A Cidade
(continuação)
Três horas da manhã. Junto ao arco, na rua enlameada e negra, o Pita tinha tintas de Diabo de mágica, que vai perder uma Alma. Agarrado a um vulto, fazia gestos convulsos, parecia querer levá-lo, dilui-lo para o negrume num boqueirão de viela escancarado como a porta do inferno. A sombra do lampião desenhava a carvão, na muralha, um aranhiço enorme.
— Pita ! — berrei-lhe.
— É o Gregório que está a morrer... E eu quero que ele leve para cova a ilusão da Mulher...
Mostrou-ma com um gesto, a velha, e depois arrastou-a pela lama, e partimos. Como uma ave a quem se tivesse torcido o pescoço, ela tinha por vezes convulsões...
O Gregório estoirava. Fôra sempre tímido e grotesco, pálido como o papel dos ofícios. Nunca vira mulheres: passara a vida sobre o papel da repartição. Nunca lera, nunca tivera grimas, coração, alma. Ouvira falar em árvores e paisagens e havia dez anos. que a doença o atirara para um quarto da casa de hóspedes da dona Felicidade. Hóspedes, eram o Pita, que para comer lhe fazia lubricidades e a endoidecia, uma troupe de palhaços, um anarquista e um doido. Pelos fins dos meses havia terrores, prasaas. O Pita, porém, intervinha com a sua ciência da vida: fechavam-se as navalhas e a Dona Felicidade escrevia garatujas de contas no livro das Perdas e Danos...
Às vezes o Pita, metia-se no quarto do Gregório a enchacar- lhe a alma de quimeras.
— O pequename! você nem sabe o que perdeu meu rico senhor Gregório... Há-as por aí das mais belas carnações de frutas, polpas aveludadas, olhos verdes e quietos como lagos... O pequename, amigo Gregório é a consolação do mal de viver...
— E os requerimentos, ilustríssimo e excelentíssimo senhor?...
O Pita tinha piedade, pelos grotescos que nunca amaram nem viveram, pelos que trazem na alma apenas restos de frases, atritos de ideias, concepções em feto. E pois que o Gregório nessa noite agonizava, ele, que no contricto da Morte deitava sempre a filosofia de fora, se pôs a tecer:
— O que alguns têm no pequename a mais tem este desgraçado a menos. Ir para a cova sem ter possuído ao menos uma linda mulher, sem lhe ter lido nos olhos poemas de adoração e de formosidade!... Vou-lhe arranjar uma pequena !...
E foi.
O Gregório morria. Tinha ainda uma hora de vida quando o Pita fez um sinal com o dedo curvo e a porta do quarto se abriu. Os palhaços escarlates uns, cor de poente, leves como nuvens entraram e cobras que se enlaçam raivosas torceram-se em epilepsias, deslocaram-se, tiveram génio, risos, gargalhadas, súbitos despeitos, um terror. Outro gesto do Pita e enquanto pedaços de nuvens do poente, varridas pelo vento ou pela Noite, a troupe colorida dos clowns se desfez, a dona Felicidade, com a boca cheia de chagas se pôs a uivar À norta:—Paguem a conta! paguem a conta! Ou morrem de fome!...
— Primeiro acto, senhor Gregório! —E deu um assobio, o Pita.
Então o Gregório, que nunca vira árvores nem paisagens, pediu-lhe com humildade uma leve explicação:
— As árvores? como são as árvores?...
— Como cabelos de mulher ao vento, como pragas a silvar raivosas dentre a penedia.
Há-as todas verdes, há-as roxas, há-as em brasa, conforme a sua floração,
E como os seus olhos se abrissem ávidos e preguntasse:
— E a paisagem?...
Como mulheres deitadas, de enormes seios duros — e verdes, inteiramente diluídas em verde, meu rico senhor Gregório...
E como eIe ficasse absorto, de olhar perdido, n’um esforço de imaginação para ver, o Pita escreveu na parede a lápis: intervalo de vinte minutos para sonhar.
Depois a outro sinal, o anarquista entrou e em palavras frias, frases curtas, se pôs a narrar a miséria, os que morrem despedaçados na engrenagem da vida, os exasperados, o Oiro que tudo calca e de tudo triunfa e num gesto largo, como se arredasse as paredes do quarto, fez-lhe ver a Multidão tolhida de fome e de Ideal, num enxurro raivoso… O Gregório agonizava os olhos abertos num pasmo, quando o Pita trouxe a mulher, ainda a dizer-lhe segredos num murmúrio, curvada sobre o seu ouvido...
— Faça se o silêncio, respeitável Dona Felicidade. E todos arrumados à porta, os palhaços, como restos de mantos pomposos, o doido estarrecido, esperaram, enquanto o Pita espreitava pelo buraco da fechadura...
Quando entraram no covil o Gregório tinha os cabelos revolucionados e o olhar doido.
A mulher acocorava-se a um canto, com febre.
— Não quero morrer ainda! não quero morrer!...
— Viste tudo, Gregório... O estupor da Vida é assim e agora seria repetir sempre a mesma coisa, maçada inútil, meu rico senhor!... A Morte liberta. Vais ser árvore, paisagem, cor, nuvem de poente. Vais ser livre...
Restos de chefe de repartição hoje, amanhã lábios* de mulher ou alma de Poeta... Papelada fria que em breve se transformará em emoção e em lágrimas... É o último esforço: mais uns minutos de dor apenas, para nunca mais pensares...
— Pita, senhor Pita, ilustríssimo e excelentíssimo senhor, que é que fez à minha alma?...
— Abri-lhe um rasgão para que o sol entrasse, e cores de poente, espirros de lume, enchi- te de quimeras inda ao morreres...
E todos se curvaram em volta do catre, os palhaços mascarados, roxos, púrpuros, a Dona Felicidade, para ver o último esgar do Gregório, enquanto o Pita berrava:
— Pode subir o pano !
(continua)
Raul Brandão.
O Micróbio, n.º 32, 21 de Fevereiro de 1895, pp. 54-55

*No texto do micróbio aparece “lubris” em vez de lábios. Deve ser erro de composição.

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