Caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro publicado na revista Pontos nos ii, nº 38, de 21 de Janeiro de 1886, pp. 300-301 [tocar na imagem para ampliar] |
A propósito do conflito entre
Guimarães e Braga que tivera o seu início no dia 28 de
Novembro de 1885, quando os procuradores de Guimarães à Junta Distrital foram
objecto de uma acção concertada, que incluiu injúrias e de
apedrejamentos, muita tinta correu nos tempos que se seguiram. O litígio entre
as duas cidades, que havia de contribuir para o derrube do último governo
fontista, também inspirou a pena de Rafael Bordalo Pinheiro, que o satirizou na
revista Pontos nos ii.
A caricatura que vai acima foi a
primeira peça que Bordalo dedicou à querela brácaro-vimaranense, cujos
protagonistas vestem a pele de personagens do poema trágico Fausto, de Goethe: Guimarães é
Valentim, Braga é a sua irmã Margarida, o Marquês de Valada, governador-civil
de Braga, é o Mefistófeles. O rei António é (António Maria) Fontes Pereira de
Melo. Aparece também o Porto, na figura da estátua que o representa, a estender
a mão a Valentim-Guimarães (neste conflito, Guimarães exigia sair do distrito
de Braga para se unir ao Porto, tendo mesmo o deputado João Franco apresentado
no parlamento uma proposta com essa intenção).
O texto que vai abaixo aparecia
na página seguinte daquele número dos Pontos
nos ii, e é o final de uma crónica que ocupa várias páginas. Vale a
pena ler.
[O Bailio a que se refere é o Marquês de Valada, representante de Fontes Pereira de Melo no distrito, na sua qualidade de governador-civil.]
Crónica
[...]
Ontem, dizia-se num grupo à porta
da Havaneza:
- …Guimarães!...
É verdade!...
Pobre Braga !... Apesar de todos os seus protestos, aposto em como Guimarães
lhe passa o pé... e vai para o Porto...
Não podia haver dúvida:
tratava-se dos nossos comuns amigos João Guimarães, Duarte Braga e Cunha Porto,
sobejamente conhecidos no mundo do Chiado...
E nós pensámos:
Uma leviandade de dilettanti do João Guimarães... Está farto
de ouvir cantar ao Braga aquela eterna serenata:
“Oh! Gatos!
Oh! Minhatos!
Oh Filipe,
Filipe sim!
Oh Filipe,
Filipe não!”
e quer agora variar um pouco,
escutando as canções brasileiras de Cunha Porto :
“Mulátinha di caroço
No piscoço
Aqui tens o teu gambão!
Mete, mete a águilhoada,
Minha
ámáda Neste dengue coração…”
Os jornais deviam falar no caso.
Tomámos um ao adito, como diria Mendonça e Costa,
deparando-se-nos logo um telegrama com os nomes de Braga e Guimarães.
Lendo-o sofregamente, só então
compreendemos que se não tratava dos nossos amigos mas sim da Braga fiel e da
Guimarães que infiel lhe quer fugir, para se lançar nos braços do Porto
conquistador e nunca conquistado!
Por aquele despacho vê-se que
Braga está no momento actual arrotando as postas de pescada duns enfartes
guerreiros, muito para admirar em estômago alimentado ao eterno guspacho de cónegos
e de beatas...
Tal estado de exaltação surpreende-nos
tanto mais quanto é certo que Braga, de natureza religiosa e conseguiutemente
pacífica, humilde, sofredora, aceita tudo com resignação, desde os cilícios
determinados pela Santa Madre Igreja até ao governador civil decretado pelo sr.
Fontes; mal se compreendendo, por isso, como agora se revolte e se enfurece, só
porque a ingrato Guimarães lhe quer fazer o mesmo que muita senhora casada tem
feito ao respectivo consorte: passar-lhe o pé…
Parecia-nos que Braga, depois de
consentir que lhe metessem o sr. Bailio de porta adentro, murmurando resignada:
“seja tudo pelo amor de Deus”, não tinha o direito de andar agora, porque lhe
tiram Guimarães, a cantar pelas ruas o hino da Maria da Fonte — cuja
propriedade exclusiva pertence hoje, de mais a mais, ao sr. Oliveira Martins da
vida
nova…
Esta incoerência flagrante, de
Braga permitir que lhe metam o sr. Bailio, escandalizando-se porque lhe tiram
Guimarães, só se explica pelo egoismo incontinente de quem permite que tudo lhe
metam, contanto que nada lhe tirem...
Mas reparo que isso não pode ser…
*
*
*
O despacho telegráfico a que
acima nos referimos, descrevendo minuciosamente a partida da comissão portadora
da representação dirigida por Braga ao parlamento, diz que essa comissão foi
acompanhada à gare por um sem número de corporações, “e pelas
bandas de música, tocando o hino da Maria da Fonte e cerca de quinze mil
pessoas”.
Aa tais bandas de música são de
sete fôlegos, como os gatos!
Depois de tocarem a Maria da
Fonte, ainda lhes resta força para tocarem quinze mil pessoas!
Irra! que aquilo não são filarmónicos
de banda; são burriqueiros da Outra Banda!...
*
*
*
O telegrama conclui por
participar que “a onda cresce” e que se espera “um levantamento geral no
concelho”!...
A onda a que o telegrama se refere está
de ver que é um pseudónimo… Assim para o público não podia o correspondente aplicar
a verdadeira tecnologia...
Mas o levantamento que espera põe tudo em pratos
limpos…
Vê-se que Braga está sofrendo uma
crise aguda, perfeitamente caracterizada…
[Marquês de Valada] |
Neste perigoso conflito,
Marche o Bailio de Lisboa,
A ver, dum modo expedito,
Se ao levantado distrito
Consegue abaixar a proa!...
Pan-Tarântula
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