Em primeiro plano, local do "Campo Santo Velho" de Guimarães (cemitério que antecedeu o da Atouguia), numa fotografia de 1903. |
26 de Abril de 1838
Em S. Martinho de Sande, o
enterro de Custódia Ferreira que havia de ser no adro da igreja, por ser o
cemitério destinado pela junta de paróquia, foi estorvado tumultuosamente por
muitas mulheres da mesma freguesia, enterrando-se na igreja. Repetiram
igualmente o acto no dia 28 deste mês com o enterro de um filho de José
Ferreira Barbosa.
(João Lopes de Faria, Efemérides
Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol. II, p. 70 v.)
Desde a Idade Média,
enraizou-se a crença de que a sepultura no interior das igrejas, nas proximidades
dos altares ou das relíquias dos santos contribuía para a salvação das almas e
a ascensão ao Paraíso. No século XIX, as preocupações sanitárias levaram os
médicos a tomarem consciência do perigo que as igrejas representavam para a
saúde pública, por serem focos potenciais de doenças e de propagação de
epidemias, resultantes da convivência constante e compulsiva dos vivos com os
mortos em decomposição debaixo dos soalhos, muitas vezes enterrados a pouca
profundidade, em resultado da exiguidade do espaço disponível para enterramentos. Impunha-se
então a necessidade de proibir as sepulturas no interior das igrejas,
criando-se para o efeito os "campos santos", os cemitérios públicos. Porém, como tal
proibição ia contra crenças profundamente arreigadas na religiosidade popular, não surpreendem as dificuldades que se levantaram à sua aplicação.
Com a vitória definitiva do
liberalismo, foi aprovada a primeira lei portuguesa sobre enterramentos, que ordenava
que se construíssem cemitérios públicos, situados em locais não
habitados, cercados por muros e consagrados.
Aquela lei tardou em aplicar-se.
No início de Março de 1838, o Administrador Geral do distrito de Braga, publicou
uma circular em que mandava as câmaras do distrito executarem o disposto no
decreto de 1835. Esta ordem foi regulada por ofício enviado pelo mesmo representante
distrital do Governo no princípio de Abril seguinte. A sua aplicação não seria
pacífica, despertando forte a resistência das populações. No dia 26 de
Abril, mulheres da freguesia de S. Martinho de Sande, afrontando as
autoridades, obrigaram a que um vizinho falecido fosse enterrado no interior da
igreja e não no adro, como estava destinado. Dois dias depois, a cena
repetia-se no mesmo local, com outro funeral.
Na sequência dos
acontecimentos de Sande, Câmara escreveu ao Administrador Geral do Distrito,
afirmando não ter dúvidas de que aqueles “ousados e escandalosos acontecimentos”
poderiam ser seguidos noutras freguesias e que “muito tem concorrido para
esta insubordinação o mau exemplo dos Terceiros Franciscanos e Dominicos desta
vila tornarem a enterrar em suas igrejas ou nas dos extintos frades”, para o
que teriam obtido licença. A Câmara pedia que fossem tomadas providências para que cessassem tais
abusos.
A situação acabaria por se
apaziguar, simplesmente porque, impotentes, as autoridades desistiram de impor o cumprimento
da lei que proibia as sepulturas dentro das igrejas.
É curioso notar que foi uma
situação em tudo semelhante à de S. Martinho de Sande que fez eclodir, uma
década depois, a revolta da Maria da Fonte, também ela encabeçada por um grupo de
mulheres que enfrentaram as milícias que pretendiam impor que a fosse dada
sepultura fora da igreja um defunto de Fonte Arcada, na Póvoa de Lanhoso.
0 Comentários