Quando João de Meira olhou o rosto de Sarmento pela última vez

O actual largo Martins Sarmento numa fotografia do início do século XX. À direita, a casa onde Sarmento faleceu no dia 9 de Agosto de 1899


O texto em que Francisco Martins Sarmento contava ter sonhado com a sua própria morte, aqui publicado, e em que manifestava a sua vontade de não ser enterrado, por não querer “dar ceva” a minhocas e gusanos, remete-nos para as disposições testamentárias que Sarmento deixou escritas e de cuja execução encarregou o seu amigo, o médico Joaquim José de Meira. Tinha receio de ser enterrado vivo, em estado de morte aparente, como se verificou que outros o foram, pelos sinais que mostravam os seus caixões, quando exumados. Assim, deixou escrito que se deixassem passar dois dias após o seu falecimento, para só então realizar o funeral, que a sua morte deveria ser confirmada por dois médicos e que, após essa confirmação, lhe deveriam ser cortadas as carótidas. João de Meira, então com 18 anos acabados de completar, foi testemunha da execução da vontade de Sarmento, cumprida por dois médicos, o seu pai, Joaquim José de Meira, e Avelino Germano, tendo publicado, três anos depois, um relato impressionante do último momento em que “olhos mortais se pousaram sobre aquela face de sábio cavada de rugas”. Aqui fica.


Martins Sarmento

Outro ano correu sobre a tarde sombria em que para sempre se afastou de nós aquele sereno espírito diamantino.

Outro ano correu, e quanto mais distante vai essa partida, parece que mais o amamos e melhor reconhecemos nele a mais legítima e indisputável glória da nossa terra.

Olhado de longe tudo o que dele havia de humano e o tornava igual a nós, esbate-se, perde-se, ficando apenas luminosa e brilhante a sua alma de santo e a sua inteligência de deus.

Outro ano passou e eu evoco, uma vez mais, a trágica cena que meus olhos viram e ainda cuidam ver.

No caixão estreito o corpo do sábio jazia venerando e augusto. O rosto fortemente moreno, onde cada ruga profunda dizia fundas meditações e uma verdade arrancada à noite do passado, rescendia paz e serenidade. Sob as pálpebras descaídas, violáceas, através das pestanas escuras, parecia, que seus olhos lançavam ainda para o mundo os últimos raios da fulgurante luz que os animara. Gotas de sangue, aflorando aos lábios, perlavam-lhe como contas de um rosário de coral, a barba onde fios brancos luziam com um brilho de prata ou de luar...

Assim devia ter adormecido na morte, sereno resplandecente e bom, o solitário, dos Çakias*; assim adormecera ele.

Naquele dia de Agosto, vindo após outros quentes e claros em que a água faltava nos tanques e a poeira crescia nas estradas, a trovoada pairou sobre a cidade. Dir-se-ia que a vasta pupila azul do céu se embaciara e deixava cair sobre aterra quentes lágrimas de impotência e desespero ante a grandeza trágica e o golpe iniludível daquela morte.

Longo tempo na saleta forrada de crepes, onde errava um cheiro enérgico de aguardente, cera e cloreto desinfectante, o meu olhar pousou no corpo hirto procurando gravá-lo na memória; e hoje, melhor do que em tela de pintor, o vejo em minha frente (se fecho os olhos) as mãos cruzadas no peito, a cabeça descaída a cavar a almofada de cetim.

Iam os médicos cortar-lhe as carótidas, que ele assim o ordenara, num justo terror de vir um dia a acordar enterrado—os joelhos de encontro à tampa do caixão, os olhos abertos na treva, sufocado pelo cheiro da terra fresca e das tábuas de pinho.

A noite descia. Um criado silencioso e fúnebre veio apagar as velas de cera que ardiam tristes junto de um Cristo descarnado, enquanto outro arrancava ao morto os colares e condecorações que ele usava pela vez primeira.

Um dos médicos, tomando o bisturi, e ajoelhando no tapete estendeu-o ao outro — Avelino Germano — que ajoelhado também tacteava o pescoço do cadáver.

Eu olhava curioso e arrepiado.

A camisa gomada estorvava. De pronto se desfez o laço de cetim e tendo procurado uma tesoura na caixa de autópsias, cortaram o colarinho. Então, num movimento brusco de quem tinha pressa de findar a dolorosa cena, o dr. Avelino Germano, entre o dedo indicador e o médio que continuaram a tactear, enterrou o bisturi nas carnes azulejadas.

Não correu gota de sangue.

Voltaram a face do morto. A janela semicerrada deixava penetrar uma luz indecisa. Abriu-se, e o vento fresco que entrou, o mesmo que arrastava para longe farrapos de nuvens, trouxe ainda os últimos roncos da trovoada que se dissipava.

Golfas de água caíam dos telhados em cadência. O barulho de um carro perdia-se ao longe. De novo o ferro se enterrou na carne. Depois, cuidadosamente, as mãos habituadas do Passos armador estenderam-lhe sobre o rosto um lenço branco de seda. E nunca mais olhos mortais se pousaram sobre aquela face de sábio cavada de rugas, mas resplandecente como a de Ganexa, o velho deus ariano da sabedoria e das artes.

Dobraram sobre ele a mortalha; e tendo trazido para o pé um saco de cal, um homem alto e magra, de barba crescida, foi espalhando por cima lentamente, com um prato, uma camada branca. Depois, ajuntando com minuciosos cuidados a tampa de chumbo, o soldador encetou a sua tarefa...

Descemos a rua em silêncio revolvendo pensamentos tristes.

Eu recordava os seus livros, atravessados por um grande sopro de verdade, que deixam entrever pedaços do passado como através de manhã nevoenta se distinguem farrapos de paisagem.

O meu cérebro, superficialmente fútil, pasmava do esforço que conseguiu pôr de pé “Os argonautas”, a “Ora Maritima”essas obras imortais onde a lenda se joeira no delicado e fino crivo da verdade.

Hoje, decorrido mais um ano, tudo isto recordo, trazendo ao morto a homenagem da minha saudade como os romanos outrora levavam à sepultura domestica a fúnebre comida sem a qual seus avós não podiam entrar no eterno inefável descanso.

João de Meira

Independente, Guimarães, 17 de Agosto de 1902
____________________________
*Sic. Saskias (no sentido de povo saxão)?


Comentar

0 Comentários