No dia 9 de Março de 1898, para assinalar o aniversário natalício de Francisco Martins Sarmento, o jornal o Progresso saiu com uma edição especial, inteiramente preenchido com textos dedicados ao arqueólogo vimaranense. Aqui fica o que lhe dedicou Avelino Guimarães:
DR. MARTINS SARMENTO
TRABALHO E PROBIDADE
Que
hei-de dizer, meu estimável P.e Gaspar Roriz?
Se
pertenço à numerosa colecção dos que afirmam que o dr. Sarmento é o primeiro
cidadão de Guimarães — que mais posso dizer?
Concordo.
Satisfaremos o empenho; e até para mais uma vez compensar umas travessuras ou
caturrices que o antigo colega na direcção da Sociedade Martins Sarmento
teve a habilidade de relevar-me, numas certas sessões revolucionárias… naquelas irritadas apreciações da organização
escolar do Pequeno Seminário… E mais ou menos, como lá dissemos, assim se
vingou… Histórias largas! largas!...
*
Honra-se
esta cidade com ser a pátria do snr. dr. Sarmento.
O
povo aponta-o, quando o vê sereno e sério, severo de aspecto, grave de modos, e
diz respeitoso: é o snr. Sarmento! A classe operária, a que lê, e procura
instruir-se, regozija-se em ver o homem cujo nome nobilita uma Sociedade que
tem por fim principal proteger os pobres contra as misérias da ignorância, e
diz: ali vai o Sarmento, isto é que é homem! A gente mais instruída respeita-o
sobretudo pelo seu saber profundo. Os políticos, que nem sempre são respeitosos
nas suas efervescências, abrem uma excepção para o snr. Sarmento e apenas o
apodam de menos prático, de fantasista...
Mas
o povo, no seu respeito um pouco nebuloso, o operário, no seu entusiasmo mais
consciente, os políticos, vivendo dum modo especial, as mais das vezes
mantendo-se em jogo funcional de equilíbrios mais ou menos instáveis, no seu
temor, cada qual sob as formas a que obedece o seu modo de ser e de pensar,
traduzem, confirmam, tacitamente concorrem para que o snr. Sarmento seja
sustentado na entronização de primeiro cidadão dum concelho de mais de quarenta
mil habitantes!
Porquê?
É
que, por mais utilitários que queiramos ser, por índole, ou por educação, há
sempre uma força superior que nos domina, que é, nas grandes crises sociais,
nas desordenadas convulsões, a força interna e medicatriz que repara os
desequilíbrios, que restabelece a normalidade de funções, e sustenta a
humanidade na sua ascensão a maiores progressos.
Esta
influência superior, de ordem moral, exerce-a, com verdadeira autoridade que
todos aceitam. porque a ninguém se impõe, exerce-a, neste nosso meio
vimaranense, o snr. Sarmento.
Mas
ainda — porquê e como? Não aceitamos o facto, sem conhecer e determinar as
causas.
Para
nós, a origem desta autoridade moral e superior do snr. Sarmento promana da
intensidade de sentimentos nobres, principalmente de dois sentimentos que
constituem os elementos diamantinos do seu carácter:
TRABALHO!
PROBIDADE!
A
intensidade de amor de trabalho produziu o sábio; a intensidade da sua
probidade, do seu amor de justiça, criou o vulto eminente, que se aponta como
modelo.
O
sábio constituiu-se com o ardor de saber, de profundar, de dirigir as suas
investigações até às radículas mais delicadas da grande árvore da ciência. Se
assim não fosse, não possuiríamos os Argonautas, além das publicações
numerosas avulsas, e em revistas nacionais e estrangeiras. O modelo de cidadão
justo criou-o o culto ciente e vivo da — justiça —, sentimento que não transige
e que produziu no snr. Sarmento o homem austero, que pode esquecer, desculpar,
mas nunca transige, o cidadão intransigente, que os políticos temem em
determinadas conjunturas, bastando apontar a que vibrou a alma nacional, em
questão de ordem geral (o ultimatum inglês), outra de ordem local (o
conflito com Braga), e em que, aceitar sem restrições os seus impulsos
patrióticos, segui-lo em todos os seus desejos, de reacção contra injustiças da
força, criaria talvez situações verdadeiramente perigosas!
Para
s. ex.ª Bismark, erigindo a força em princípio dominador, é apenas um monstro,
a personalização, neste século, das brutalidades selvagens dum antigo Átila; e
a Inglaterra, que lho aceitou, e pôs em execução humilhando-nos, e
arrebatando-nos territórios e menosprezando as antigas tradições históricas,
uma horda de extintos hunos, que renasceu apenas disfarçada em fórmulas de
época civilizada!
*
Esta
disposição inata dum carácter erecto, sem enfraquecimentos, antes avigorado com
os anos, apesar das doenças, que alquebram, apesar das desilusões da vida, que
tanto corroem, produziu para este concelho, além dos efeitos salutares dos bons
exemplos, criações concretas dum valiosíssimo benefício.
Lembraremos
a maior: foram essas disposições de carácter superior que mais concorreram para
que s. ex.ª anuísse a consentir que o seu nome honrasse uma nova corporação
desta cidade.
O
que se propôs a Sociedade Martins Sarmento? Orientar esta cidade e concelho na
aspiração de melhoramentos de ordem moral, prevenindo, pela educação de novas
gerações na escola, os perigos da ociosidade e da miséria.
Estava
então no seu auge a mania fontista das — estradas—, que absorvia todas as
iniciativas.
Urgia
pelo menos atenuá-la, e criar para o povo outra ordem de viação: a viação para
o espírito, que também carece de fazer jornadas, e cada vez mais árduas.
A
empresa satisfazia aos dois sentimentos, aos dois ideais do especial culto do
snr. Sarmento: o da justiça, o do trabalho.
Feita
a conquista do nome aureolado, viu-se em quinze anos a renovação de Guimarães,
criando monumentos de civilização moral e estabelecendo uma atmosfera vibrante
de intelectualidade: uma escola industrial, uma Colegiada com seminário e foros
de liceu, uma biblioteca, museu, esbatendo pouco e pouco, mas visivelmente, o
culto exagerado dos melhoramentos materiais!
Estas
conquistas, esta renovação civilizadora, liga-se evidentemente, em génese mui
directa, ao nome e às virtudes do grande cidadão vimaranense.
Não
se fez tudo?
Não.
Nem
a Sociedade Martins Sarmento morreu, ou se deteve na sua propaganda
eminentemente patriótica.
E
há ainda multo que lutar.
O
campo é vasto. Especialmente pelo que respeita à instrução primária, urge
salvar o país da vergonha perante o mundo civilizado de conservar milhões de
analfabetos, e portanto urge salvar este concelho do mesmo estado vergonhoso e
deprimente.
É
este um dos maiores deficits da nossa economia.
Nos
Estados Unidos da América do Norte foi recentemente proibida a admissão de emigrantes
estrangeiros analfabetos
Ao
analfabeto português está pois vedada a emigração para este grande país.
Se
outros países, se especialmente o Brasil, se protegerem contra a invasão de
analfabetos, que resta ao português que não encontra trabalho remunerador?
Esmolar?
Tristíssima
vida!
Suicidar-se?
E
a família?
Suicidar-se
moralmente, roubar, descer às maiores vilezas?... Aumentar as classes perigosas?...
*
Em
1881 era o snr. Sarmento, na sua esfera de sábio, independente e livre,
cavalheiroso e justo, reputado o primeiro cidadão de Guimarães.
Em
1898, a nove de Março, ninguém ainda pode disputar-lhe esta verdadeira realeza
.
Recolhido
por génio e pelas doenças, modesto e sem ambições, trocando títulos (apesar das
instâncias do marquês de Sousa Holstëin) pelo pára-raios da torre central do
castelo de Guimarães, nunca usando das numerosas condecorações de mérito
científico que tem recebido, sempre recto em todas as relações da sua vida, e
benigno para as quedas alheias, generoso, protector de todas as fraquezas que
se abriguem à sua protecção, patriota, justo, cavalheiroso, afável... exerce
esta superior realeza, e há-de exercê-la enquanto viver: ser respeitado,
estimado, e querido de quantos se honram com as suas relações pessoais, de
quantos conhecem todas as suas virtudes cívicas.
Avelino
Guimarães.
O Progresso, n.º especial, Guimarães, 9 de Março de 1898
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