José Sampaio |
Alberto Sampaio |
No tempo em que os irmãos José e Alberto Sampaio
frequentaram a Universidade de Coimbra, vivam-se tempos turbulentos na
Academia, relacionados com a contestação à inflexibilidade do reitor, Basílio
Alberto, no que tocava à rigorosa aplicação da disciplina, ainda reguladas
pelos estatutos em vigor desde o tempo do Marquês de Pombal. Vai ser aí que, ao
lado de Antero de Quental, os dois vimaranenses irão participar na Sociedade do
Raio, associação secreta de carácter conspirativo que tinha como propósito precipitar
a destituição do reitor. As actividades deste grupo de estudantes são descritas
por António Cabral, num livro dedicado a Eça de Queirós, que também viveu o
tempo coimbrão dos Sampaios. Aqui fica a transcrição das páginas em que António
Cabral conta a história da “revolução” estudantil protagonizada pela Sociedade
do Raio:
No ano lectivo de 1861 a 1862, quando Eça de Queirós se matriculara no
primeiro ano jurídico, cursaram de novo a Universidade vários estudantes que a
rigidez e a severidade do austero reitor de então, conselheiro Basílio Alberto
de Sousa Pinto, lente de primo jubilado da faculdade de Direito, haviam feito
riscar temporariamente, impedindo-os de frequentar as aulas. O prelado
universitário, homem alto e seco, de perfil enérgico e decidido, que eu ainda
conheci em Coimbra — já então agraciado com o título de visconde de S. Jerónimo
— percorrendo, a cavalo, as ruas e os arredores da cidade, exigia e
determinava, em edital afixado na Universidade, o cumprimento exacto e rigoroso
dos estatutos pombalinos, impondo à academia uma férrea disciplina. Os
estudantes, sujeitos à fiscalização aturada dos verdeaes, eram obrigados a
entrar nas aulas com cabeção eclesiástico, batina abotoada, meia preta e
sapatos como usam os padres, sendo apenas dispensadas as fivelas. A loba
desabotoada ou a bota-de-elástico eram consideradas transgressões subversivas.
Troças aos caloiros — proibidas. Proibidas também as estrondosas manifestações
de alegria das vésperas de feriado. À menor falta, o reitor fazia internar os
estudantes na cadeia académica. A academia respirava uma atmosfera densa e
crassa…
O próprio corpo docente vivia desassossegado. Conta-se que o lente da
faculdade de Direito, sr. dr. Aires de Gouveia, que então ainda não era bispo
de Betsaida, nem arcebispo de Calcedónia, - nem sequer simples sacerdote, mas
sim um luzido janota, de bem tratado bigode e rosa fresca a florear-lhe sempre
a banda do casaco, fora, um dia, chamado pelo reitor, que lhe exigiu o corte do
bigode, por considerar um censurável escândalo não andar um lente de cara toda
rapada.
— Prelado, — diz-se que lhe respondera o sr. Aires de Gouveia — na minha
cara só eu governo!…
E saiu, deixando o chefe supremo da Universidade espantado com a audácia de
tão desrespeitosa resposta.
Tal situação, deveras tensa e violenta, não podia prolongar-se e durar, sem
protesto colérico e reacção impetuosa da academia irritadíssima, incitada e
impelida a excessos, ao que parece, por um ou outro professor a quem a aspereza
do seu prelado desagradava e feria. Alguns estudantes mais valentes, reagindo à
severidade do ríspido reitor, juntavam-se em grupos e perseguiam, a horas
mortas, os caloiros tresnoitados. Outros, também por noite velha, praticavam
toda a casta de desacatos, contra os quais nada podia a polícia universitária,
constituída pelos inofensivos archeiros, que se encolhiam, tímidos e
apavorados! Era um terror por toda aquela Coimbra…
Assim se chegou às vésperas da distribuição de prémios aos estudantes
laureados, que se realizava, todos os anos, a 8 de Dezembro, dia da festa de
Nossa Senhora da Conceição, padroeira da Universidade.
Um estudante adventício, Alfredo Mântua, rapaz de grande merecimento, que
não chegou a formar-se e que um dia, dando lição na cadeira de Direito
eclesiástico, fez afirmações de tanta heterodoxia que os alunos teólogos saíram
da aula, doridos e escandalizados — propôs então a alguns amigos, como
infalível meio de fazer cair o reitor do seu pedestal de tirano, que a academia
lhe voltasse as costas e saísse da Sala dos Capelos no momento em que ele
iniciasse a alocução que lhe competia e que era de uso fazer na solenidade da
distribuição dos prémios. Foi aceite, como era de esperar, o arrebatado e
sedicioso alvitre. Adiante se verá como foi posto em prática.
Para dar combate ao despotismo de Basílio Alberto, diligenciando a sua
queda, e também para levantar a academia do seu extremo abatimento, alguns
estudantes tinham organizado uma associação secreta, de que foram principais
fundadores o aluno do segundo ano jurídico José Bento da Cunha Sampaio, que,
finda a formatura, advogou com proficiência em Guimarães; seu irmão, que depois
veio a ser o ilustre escritor Alberto da Cunha Sampaio; João de Sousa Vilhena,
que há anos faleceu, sendo juiz de uma das varas cíveis de Lisboa; Frederico
Fílemon da Silva Avelino, que morreu juiz de Direito, julgo que em Ponte do
Lima; Francisco de Assis Caldeira Queirós, também depois juiz de Direito;
Frederico de Abreu Gouveia, que eu conheci exercendo as funções de director
geral dos negócios de Justiça e José Peres Ramires, que eu também conheci,
muito surdo, juiz de Direito na comarca de Cantanhede. O meu ilustre amigo e
colega, sr. conselheiro António de Azevedo Castelo Branco, que então cursava o
segundo ano jurídico e me deu, para este capítulo do meu livro, valiosíssimas
informações, foi dos primeiros sócios. Depois, o número destes avultou e
cresceu, contando-se entre eles Antero de Quental — que na sociedade teve
influência e preponderância decisivas, o que deu motivo a que inexactamente se
dissesse, e se acreditasse, que fora por ele organizada —; o futuro romancista
Júlio Lourenço Pinto; D. Tomás de Noronha, depois visconde de Alenquer; José
Falcão, mais tarde lente de Matemática na Universidade; o sr. dr. Eduardo
Segurado; Florido Teles de Menezes e Vasconcelos, que foi advogado e professor
de Economia política, na Academia Politécnica do Porto; o sr. conselheiro
Augusto Cardoso Pinto Osório, juiz aposentado do Supremo Tribunal de Justiça; o
médico António Mendes Lages, que é hoje padre jesuíta e que no teatro Académico
comandava uma horda borradora de caloiros beirões, quando os estudantes se
manifestavam furiosamente contra a Rússia, empenhada então em esmagar a Polónia
rebelada; António Fialho Machado, depois deputado da Nação, que no mesmo
Teatro, com voz de trovão atroador, levantava os vivas, no palco, depois de
recitar aquela ode revolucionária de Antero, que começa:
Águia da França! que te vejo agora
Como ave da noite, triste e escura!
Há pouco ainda a olhar o sol — nesta hora
Meia ofuscada ao resplendor da altura!
E mais adiante:
Contra a Rússia — a heresia das nações —
Um grande e forte apóstolo de ferro!
Que vá direito dentro aos corações
Com rijo abalo esmigalhar o erro!
A esta associação secreta, que ao começar o ano lectivo de 1862 já tinha
mais de duzentos sócios, deram alguns estudantes, que nela não estavam
filiados, o nome de Sociedade do Raio,
inventando que Antero de Quental e outros associados, em dia de medonha
trovoada, do alto do Penedo da Saudade intimaram a Divindade, em brados
clamorosos e atroadores, a provar a sua existência, castigando o ateísmo dos
borradores com a expedição fulminante dum raio… que os partisse! Balela
extreme!… Se bem que alguém, da família do dr. José Peres Ramires, me disse que
este referia o facto como verdadeiro, mas sucedido no quarto de Antero e não no
Penedo da Saudade: e acrescentava que o raio caíra em sítio próximo, o que
muito impressionara o poeta…
A apresentação ou filiação dos sócios fazia-se à hora fatídica da
meia-noite, em local remoto, sombrio e ermo, desconhecido dos neófitos, perante
estudantes encapuzados nos gorros. Essas reuniões tétricas realizavam-se umas
vezes junto dos muros do triste cemitério de Santo António dos Olivais. outras
vezes entre os tufos de árvores do Choupal, outras no Vale do Inferno, na
estrada de Santa Clara. Os prosélitos inscreviam-se num livro, liam perante
três embuçados um termo de compromisso com solene juramento, recebiam e davam
estreitos apertos de mão e ficavam formando parte da associação terrível, que
se dividia em secções e era superiormente dirigida por um conselho supremo, a
que presidiam, alternando-se, José Sampaio, Caldeira Queirós e Peres Ramires.[i][i]
Eça de Queirós, que, todavia, segundo li, assinou o manifesto da academia,
ofendida e magoada pelo rígido reitor Basílio Alberto, não pertenceu à Sociedade do Raio, cujo princípio data
de Abril de 1861. Era um tímido. Alem disso, os dirigentes para ela não
convidaram estudantes do primeiro e do quinto ano, e o futuro escritor era
novato. Os primeiranistas, noviços, inexperientes, e os quintanistas, que em
breve deixariam a vida académica, não convinham para membros da tremenda
sociedade. Só dela eram sócios os estudantes que mais em relevo e em evidência
se achavam pelo seu valor intelectual ou pela sua força física e não estavam em
começo ou no fim da sua carreira literária. Tal era a ousada associação secreta
que tinha deliberado depor o inflexível reitor Basílio Alberto.
Fez ela terríveis coisas. Um exemplo: em Outubro de 1862 — a 21 ou 22 — ,
quando o príncipe Humberto de Itália, que depois foi o rei infeliz covardemente
assassinado em Monza, visitou Coimbra, alguns dos membros da Sociedade do Raio aproveitaram a ocasião
para manifestar as suas ideias avançadas. Foi nomeada uma comissão para saudar
o príncipe, composta, na sua maior parte, por alunos que Basílio Alberto tinha
feito riscar da Universidade e que, como adventícios, voltavam à frequência das
aulas, sendo incumbido Antero de Quental, que, aliás, não tinha sido riscado,
de redigir e ler — como leu, estando presente o reitor — a mensagem de
saudação, de que foi entregue a Sua Alteza uma cópia, escrita em italiano.
Nesse documento, em que havia palavras de amor e de ternura para a Itália livre
e para Garibaldi, recentemente ferido em combate, na sua tentativa de
unificação do_ seu país, com secreto acoroçoamento de Cavour, lia-se o seguinte
período, demasiadamente significativo: — “Não é ao representante da casa de
Sabóia que vimos prestar homenagem; é ao Filho do Primeiro Soldado da
Independência italiana; desse de quem os reis da Europa aprendem como neste
século ainda se pôde ser popular sendo-se rei; de quem a Itália espera
ressurreição completa; de quem espera a Igreja cristã uma nova época de
verdadeira grandeza e liberdade verdadeira.” À noite, houve récita no Teatro
Académico, lendo Fialho Machado aquela poesia de Antero de Quental, cujos
primeiros versos são:
Itália e Portugal! Que duas pátrias,
Ambas tão belas, tão formosas ambas!
Uma a pátria do berço; outra a das almas:
Uma a das artes; outra a dos combates!
Correu depois em Coimbra que o príncipe Humberto julgara que a poesia era
feita em latim!...
Na subsequente distribuição de prémios, a 8 de Dezembro de 1862, o plano
lembrado por Alfredo Mântua executou-se. Os mais alentados e valentes
estudantes, membros da Sociedade do Raio,
os mais conhecidos pela sua ousadia e pelo seu destemor, ocuparam, na Sala dos
Capelos, a frente do auditório, junto à teia, e, mal o reitor pronunciou as
primeiras palavras do discurso que era da praxe proferir naquela festa
universitária, deram-se as mãos, formando cadeia, e voltaram-se, saindo de
roldão e arrastando assim todos os académicos presentes, muitos dos quais não
estavam no segredo da violenta manifestação. O reitor, cujo ânimo esforçado não
se apoucava nem intimidava facilmente, assistiu, sereno e afoito, à sabida dos
estudantes, recebeu o ultraje sem se diminuir na sua dignidade, e, aquietado o
tumulto e sossegada a inquietação dos lentes e doutores, pronunciou placidamente
a sua oração, falou em termos alevantados, mas vigorosos, referindo-se ao que
acabava de passar-se como quem já esperava tal acto revolucionário e
descomedido.
Evacuada a Sala dos Capelos pela academia em massa, cá fora, os estudantes,
em vez de se dirigirem em silêncio imponente para as respectivas moradas, como
fora combinado ao delinear-se o programa da impetuosa manifestação, romperam,
desvairados, em vivas e morras, em gritos estridulosos, em aclamações
vibrantes. Muitos académicos ficaram, desde logo. persuadidos de que aqueles
desmandos deploráveis seriam obstáculo sério e estorvo invencível à imediata
exoneração do reitor, muito provável, quase certa, se a desconsideração
gravíssima de que ele fora alvo não exorbitasse da combinação assente, desfechando
em chinfrim indecoroso, em verdadeiro tumulto de arruaceiros. Não se enganaram,
esses. O governo do duque de Loulé, querendo fazer respeitar o princípio da
autoridade, manteve o conselheiro Basílio Alberto no seu posto, para o qual
tinha sido nomeado por decreto de 7 de Abril de 1859, tendo sido nele
reconduzido por decreto de 7 de Abril de 1862.
Foi então que alguns membros mais destemidos da Sociedade do Raio formaram o plano audacioso de raptar de noite o
reitor e de o manter alguns dias preso em casa desconhecida, dispensando-lhe
todas as atenções, cercando-o de todos os cuidados e restituindo-o depois à
liberdade e à família, com recomendação de que tratasse tão bem a academia como
ele próprio fora tratado. Este plano atrevido nunca passou de esboço ou
projecto sem consistência e sem autorização do conselho director da terrível
associação secreta.
Passados meses, em Julho, quando já tinha findado esse ano lectivo, tão
agitado e tão fértil em acontecimentos de gravidade, Basílio Alberto, já então
agraciado com o título de visconde de S. Jerónimo, pediu a demissão do cargo de
reitor da Universidade de Coimbra — que
serviu muito a meu contento, reza o decreto de 22 de Julho de 1863, que lha
concedeu. Foi nomeado, para o substituir, o dr. Vicente Ferrer, mais benévolo e
complacente, a quem mais tarde, por decreto de 17 de Novembro de 1870, foi
também dado o título de visconde de Freixo, mercê a que renunciou, sendo-lhe
aceite a renúncia por decreto de 1 de Março de 1871, como tudo se pôde ver nos respectivos
números do Diário do Governo.
A Sociedade do Raio, dada ao
reitor a exoneração que ele solicitara, dissolveu-se, visto que a razão
principal, ou talvez única, da sua existência, era a permanência do odiado
Basílio Alberto no alto lugar de prelado universitário. As várias secções
reuniram-se, para resolver se os sócios se deveriam filiar na maçonaria, que os
partidos histórico e regenerador então exploravam, sob a direcção, em Coimbra,
respectivamente, do dr. Lourenço de Almeida Azevedo, que eu ainda conheci lente
da faculdade de Medicina, e do dr. António da Silva Gaio, também lente de
Medicina, romancista e dramaturgo notável. Na secção a que assistiu a ilustre
personalidade que me forneceu, para este capítulo, algumas informações
interessantíssimas, o sr. dr. Manuel de Arriaga combateu arduamente a filiação
dos sócios na maçonaria, achando indigno que a academia trocasse a negra batina
pelo avental do trolha. Apesar disso, alguns estudantes, que já sonhavam talvez
com pingues e rendosos empregos públicos, fizeram-se maçons, procurando
promover a reforma do ensino e a substituição do regime disciplinar da
Universidade. Poucos foram. A maioria riu da inofensiva maçonaria daquela época
e dos tais pruridos de reforma.
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