Guimarães, por Miguel Torga


Miguel Torga
Em 1950, Miguel Torga publicou o seu ensaio Portugal, em que contava uma viagem de norte a sul do país, começando pelo Minho. Começa assim:


O verde come o resto do arco-íris...
Quem quer vir combater
Contra a monotonia?

Era em Caldelas que o meu desespero se exprimia assim. Mas qual o quê! As ninfas, engrinaldadas de limos, riam-se e mergulhavam nas fontes. E um companheiro de Fafe, daltónico como todos os seus com provincianos, só me sabia repetir:
- É sedativo...
- E bovino! - refilava eu.
Pouco depois, a caminho de Guimarães, com antolhos de parra a impedirem o aceno de qualquer horizonte, apetecia mais do que ruminar. Uma indizível melancolia, para além do quadrúpede, mandava especar a raiz num lameiro e vegetar.
Na citânia de Briteiros, a evocação dum passado sobranceiro aos charcos, todo vivido nas alturas agrestes do mundo, deu-me um pouco de calma. Infelizmente, logo a seguir, os aquistas das Taipas lembravam anjos a veranear numa nuvem de clorofila... Parecia uma alucinação. E comecei a parodiar-me:
O vinho é verde, o caldo é verde...
Era uma tolice rematada ir visitar a célula da nacionalidade com tanta folha nos sentidos. A cama da pátria deve espelhar a enxerga dos filhos. E, tanto no temporal como no espiritual, cada português nasceu sempre numa manjedoira de palhas secas. Mas, enfim...
O berço! Não há ninguém que não trema diante desta palavra. Tudo a depender dela, o bom e o mau, e a gente sem poder nada! Um momento social azado, o desvairo duma mãe, a ambição dum príncipe, a fidelidade dum aio, e eis uma nação que surge contra todas as forças que querem fazer da terra um descampado colectivo. A espada triunfadora baliza as conquistas, açaima as próprias razões da natureza, e é mais um país marcado a ferro no mapa, independente, singular, responsável. É mais um povo que pelos séculos dos séculos terá de arrastar um destino próprio, a fazer milagres da pobreza do chão, das vogais da língua, do lirismo da alma. De vez em quando poderá ter um acesso de fúria e tentar fugir de si. Baldada ilusão. Aonde chegar será sempre ele ainda, a morrer de saudades e a sonhar o regresso da aventura com uma pequena reforma. Como bálsamo, restar-lhe-á o narcisismo das façanhas passadas e o somático contentamento de ver crescer e progredir os mundos que descobriu e civilizou.
- Mas quem renega o ninho?
Era o fantasma de Soares dos Reis que fazia a pergunta, barbudo, infeliz, a macerar a mão de artista na cota de malha do Fundador.
- Eu cá, não!
Respondia-lhe de costas voltadas para o mostrengo do Paço dos Duques de Bragança, com os olhos postos na Capelinha de S. Miguel, toda ela a dar aconchego à pia baptismal do rei obstinado. Dizia-me mais ao coração a pureza simbólica daquela pequenez do que a grandeza balofa do casarão recheado de bricabraque.
Em baixo, estendido a nossos pés, o velho burgo mourejava corajosamente, numa actualização febril, esquecido da sua colegiada, da sua gárgula obscena e das suas varandas torneadas onde ainda hoje apetece namorar. A pátria não mastigava só com a dentadura patriótica das ameias do castelo...

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